No presente post, será feito um resumo da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Esher e outros vs. Brasil. O contexto fático do litígio ocorre nos conflitos sociais em prol da reforma agrária no Estado do Paraná. Na decisão da CIDH, analisa-se, sobretudo, o conteúdo do direito à privacidade (no art. 11 do Pacto de São José da Costa Rica), o qual, na espécie, foi violado por decisão judicial brasileira.
O caso perante à República Federativa do Brasil
Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni eram membros da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais – ADECON e da Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda – COANA, as quais mantinham relações com o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, no Estado do Paraná.
No dia 5 de maio de 1999, a Polícia Militar do Paraná requereu ao Juízo de Direito da Comarca de Loanda interceptação e monitoramento de linha telefônica, instalada na sede da COANA. Alegou-se que essa entidade estaria sendo utilizada “pela liderança do MST para práticas delituosas”, tais como o desvio de recursos de financiamentos rurais. Ademais, reputou-se necessária a quebra do sigilo telefônico para a investigação de homicídio.
No mesmo dia, a juíza Elisabeth Khater autorizou a interceptação telefônica, mediante simples despacho à mão “na margem da petição, na qual escreveu ‘R[ecebido] e A[nalisado]. Defiro. Oficie-se. Em 05.05.99′”. O Ministério Público não foi notificado. Novamente, a polícia militar, sem qualquer fundamentação, pediu a interceptação de outra linha telefônica da COANA e de linha da ADECON. Da mesma forma, a decisão de deferimento foi lacônica e o parquet, ignorado.
As gravações vazaram para a Rede Globo e acabaram expostas no Jornal Nacional, na noite de 07/06/1999. No dia seguinte, o Secretário de Segurança Pública do Paraná fez coletiva com a imprensa e expôs parte do conteúdo de algumas conversas.
Um ano depois, os autos foram enviados ao Ministério Público estadual, o qual emitiu parecer com as seguintes conclusões: a) os policiais militares requerentes, além de não terem vínculos com a Comarca, não presidiam qualquer investigação, sendo partes ilegítimas; b) o pedido foi requerido sem qualquer conexão com inquérito ou processo em curso; c) o segundo pedido de interceptação não foi motivado; d) o procedimento de quebra não foi anexado a qualquer processo; e) as decisões judiciais não foram fundamentadas. Ao final, o Ministério Público concluiu que as interceptações tiveram fim exclusivamente político, “em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação”.
Assim, a pedido dos movimentos sociais, o MP enviou notitia criminis ao Tribunal de Justiça em face do ex-secretário, da magistrada e dos militares envolvidos. A investigação criminal foi arquivada por decisão da Corte Especial, a qual ordenou apenas a remessa dos autos ao primeiro grau a fim de se analisar a conduta do ex-secretário, em razão da suposta divulgação ilícita dos diálogos interceptados. Concluída a investigação, foi apresentada denúncia contra a referida autoridade, havendo condenação em primeira instância; contudo, o Tribunal de Justiça a absolveu, sob o fundamento de que não houve quebra, pois os “dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão.”
Em relação à juíza, o procedimento administrativo para apurar falta funcional foi arquivado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça. Em seguida, após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República enviou o caso ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ. O procedimento foi igualmente arquivado, sob a justificativa de que a rejeição da ação penal foi exaustiva, não deixando margem para qualquer processo administrativo.
O caso perante o Sistema Interamericano de Direito Humanos
Inconformadas com o grampo, as organizações Rede Nacional de Advogados Populares e a Justiça Global, em nome dos membros das CONAE e da ADECON, peticionaram, em 26/12/2000, à Comissão Interamaricana de Direitos Humanos, alegando que interceptação telefônica feita pelo Juízo de Direito da Comarca de Loanda violou o direito à privacidade e o Estado Brasileiro não tomou medidas adequadas e efetivas para reparar os danos decorrentes.
Em 20/12/2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou demanda à CIDH, aduzindo que, em razão dos fatos antes descritos, o Brasil violou os seguintes artigos do Pacto de São José da Costa Rica): 8.1 (Garantias Judiciais), 11 (Proteção da Honra e da Dignidade), 16 (Liberdade de Associação) e 25 (Proteção Judicial).
Na Corte, foram apresentadas petições pelas partes e ouvidas diversas testemunhas. A fim de analisar a interceptação telefônica à luz do direito brasileiro, emitiram laudos, como peritos, Luiz Flávio Gomes, o qual foi indicado pela Comissão Interamericana, e Maria Thereza Rocha de Assis Moura, indicada pelo Brasil.
O conteúdo da sentença da CIDH
Em 10 de junho de 2009, foi prolatada a sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. No mérito, a Corte assentou que “o artigo 11 da Convenção proíbe toda ingerência arbitrária ou abusiva na vida privada das pessoas, enunciando diversos âmbitos da mesma como a vida privada de suas famílias, seus domicílios e suas correspondências.”
Em relação ao art. 11, consta, na sentença, que esse dispositivo convencional “protege as conversas realizadas através das linhas telefônicas instaladas nas residências particulares ou nos escritórios, seja seu conteúdo relacionado a assuntos privados do interlocutor, seja com o negócio ou a atividade profissional que desenvolva”. Estariam albergadas pela proteção à vida privada “qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas.”
Quanto à interceptação telefônica, a CIDH afirmou que essa medida somente se legitima em face da Convenção Americana se cumprir os seguintes requisitos: “a) estar prevista em lei, b) perseguir um fim legítimo; c) ser idônea, necessária e proporcional.” Assim, em verdadeiro controle de convencionalidade, entendeu-se que a Lei n. 9.296/96 está em conformidade com a Convenção. Por conseguinte, considerando que a interceptação realizada em detrimento das vítimas não observou os requisitos do direito interno previstos em tal diploma legal (eis os vícios: ilegitimidade da polícia militar para requerer, ausência de fundamentação na decisão, falta de notificação do MP e ausência de transcrição das fitas), houve violação do Pacto de São José da Costa Rica.
Entendeu-se igualmente que a persecução penal ilegítima violou o princípio da liberdade de associação. Da mesma forma, foi considerada ilegítima, por falta de fundamentação, “a decisão em sede administrativa relativa à conduta funcional da juíza que autorizou a interceptação telefônica.”
Ao final, ordenou-se ao Brasil a obrigação de indenizar Arlei J. Escher, Dalton L. de Vargas, Delfino J. Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni. Fixou-se também a obrigação de divulgar a sentença e de investigar os fatos relacionados ao caso.