O valor do preâmbulo nas constituições

28 de dezembro de 2010

Nas constituições escritas, o preâmbulo é uma declaração solene que “atesta a origem do poder constituinte, seu fundamento, seus objetivos e a essência do pensamento que orientou os trabalhos da assembléia.”[1] Segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho, o preâmbulo “é, um só tempo, uma certidão de origem e uma declaração de princípios”.[2]

Apesar de conter uma breve explanação, o preâmbulo reflete toda uma conjuntura histórica, sendo a síntese das idéias predominantes no processo constituinte. Em geral, suas disposições descrevem a legitimidade do poder constituinte, exaltam certos valores e fixam finalidades a serem perseguidas.

No Brasil, todas as leis fundamentais apresentaram um preâmbulo, o qual faz parte de nossa tradição constitucional. Nesse contexto, o caráter político e ideológico dos preâmbulos é inquestionável. A questão controvertida consiste em saber se as disposições preambulares possuem força normativa.

Na doutrina, predomina o entendimento de que as disposições preambulares não ostetam a natureza de normas jurídicas. Assim, o preâmbulo não é capaz de produzir direitos e deveres ou invalidar atos que lhe sejam contrários.  Contudo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante. Para Vital Moreira e Canotilho, o valor dos preâmbulos é subordinado, funcionado como elementos de interpretação e, eventualmente, de integração das normas constitucionais.[3]

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, esse entendimento tem sido expressamente adotado. Com efeito, na ADI 2076, a Suprema Corte deixou claro que o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 não tem força normativa. Assim, julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade por omissão movida em face do preâmbulo Constituição do Acre, a qual, diferentemente da Constituição Federal, não se reportou “a proteção de Deus”. Portanto, não há qualquer obrigatoriedade de as constituições estaduais se reportarem à proteção divina ou qualquer outra passagem do preâmbulo federal.[4]

Contudo, a possibilidade de invocação do preâmbulo na interpretação de algum dispositivo constitucional foi utilizada pela Primeira Turma do STF no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 26071. Nesse processo, decidiu-se que certo candidato portador de doença denominada “ambliopia” tem direito à concorrer nas vagas reservadas aos deficientes físicos. Na espécie, o relator fundamentou sua interpretação do princípio da igualdade numa disposição do preâmbulo da atual Constituição (“sociedade fraterna”): “A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.”[5]

Portanto, é correto afirmar que, embora não seja uma norma jurídica (o que impede de ser utilizado como parâmetro de controle de constitucionalidade), o preâmbulo é um importante instrumento no processo de interpretação dos dispositivos da Constituição.


[1] MALUF, Sahid. Direito Constitucional. São Paulo: 1976, p. 60.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada, vol. 1, 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 180.

[3] Idem, p. 181.

[4] STF,  ADI 2076, Relator:  Min. Carlos Velloso, DJ 08-08-2003, p. 86.

[5] STF, RMS 26071, Relator:  Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJe-018, 31-01-2008.


Lei nº 12.344/10 – Separação absoluta de bens passa a ser obrigatória para maiores de 70 anos

13 de dezembro de 2010

Em sua redação original, o art. 1641, II, do Código Civil determinava que as pessoas maiores de 60 anos somente poderiam se casar pelo regime da separação de bens. Nesse regime patrimonial, os bens são incomunicáveis, o que significa dizer que um cônjuge não terá direito àquilo que o outro possuía antes do enlace ou que passou a ter durante a relação matrimonial.

É fácil perceber que a finalidade da norma era proteger o patrimônio do idoso e a expectativa de direito dos futuros herdeiros, evitando que uma aventura amorosa a pusesse em risco. Em outras palavras, procurava-se conter o famoso “golpe do baú”.

Apesar dessa nobre finalidade, o citado dispositivo foi profundamente criticado pela doutrina, que o considerava inconstitucional por ferir a dignidade humana. O jurista mineiro César Fiúza assim se manifestou sobre o tema: “A constitucionalidade do regime de separação legal imposta aos maiores de 60 anos vem sendo discutida, desde a entrada em vigor do Código Civil. De fato, não parece de bom senso a exigência, que representa uma capitis diminutio aos maiores de 60 anos. A norma os infantiliza, os idiotiza, o que não condiz com a realidade. Hoje, uma pessoa de 60 anos é ainda um jovem, pelo menos para efeito do casamento.” (Direito Civil: curso completo, 14 ed., 2010, p. 981).

Por força da Lei nº 12.344, de 09 de dezembro de 2010 (DOU 10/12/2010), a idade prevista no art. 1641, II, do Código Civil foi aumentada para 70 anos. Assim, o regime da separação somente é uma imposição legal, caso um dos nubentes seja um septuagenário. Agora, um homem de 69 anos de idade pode casar, desde que o pacto antenupcial assim o preveja, com uma jovem de 21 anos pelo regime da comunhão universal de bens.

Nesse contexto, é de se indagar a situação de quem foi obrigado a se casar pela separação absoluta por conta da redação original do art. 1641, II, do CC e, hoje, possui menos de 70 anos. Parece-nos que essas pessoas poderão pleitear a alteração no regime de bens todos. De fato, nessa matéria, prevalece o princípio da mutabilidade justificada (art. 1639, § 2º, do CC). Assim, desde que exista pedido motivado de ambos os cônjuges, o juiz pode determinar a alteração do regime de bens, ressalvados os direitos de terceiros. Contudo, trata-se de tema polêmico, que deverá ser objeto de estudos mais intensos.


Direito à privacidade e fiscalização do conteúdo de e-mail corporativo

6 de dezembro de 2010

 

Atualmente, é comum as empresas disponibilizarem aos seus empregados e-mails corporativos. Nesse contexto, existe uma grande discussão acerca da possibilidade de o empregador fiscalizar o conteúdo das mensagens enviadas pelos empregados no âmbito dessas correspondências eletrônicas.

Esse tema é complexo, envolvendo a aplicação do direito fundamental à privacidade nas relações privadas. Talvez, alguns não percebam, mas a incidência dos direitos fundamentais na esfera privada envolve sempre uma ponderação de interesses entre valores constitucionais em conflito. Na espécie, há uma colisão entre o direito à privacidade do empregado e o direito do empregador de gerir sua empresa como melhor lhe aprouver (autonomia privada).

Para o Tribunal Superior do Trabalho, o e-mail corporativo é uma ferramenta de trabalho para a comunicação institucional, razão pela qual é lícito o controle do conteúdo das mensagens. Os seguintes precedentes mostram bem esse entendimento:

PROVA ILÍCITA. “E-MAIL” CORPORATIVO. JUSTA CAUSA. DIVULGAÇÃO DE MATERIAL PORNOGRÁFICO. 1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estritamente pessoal, ainda que virtual (“e-mail” particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade. 2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado “e-mail” corporativo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profissional. Em princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço. (…) 5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em “e-mail” corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal. 6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento. (TST- RR-613/2000-013-10-00.7, 1ª Turma, Rel. Min. JOÃO ORESTE DALAZEN, DJ de 10/6/2005)

RECURSO DE REVISTA OBREIRO: I) DANO MORAL – NÃO CARACTERIZAÇÃO – ACESSO DO EMPREGADOR A CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO – LIMITE DA GARANTIA DO ART. 5º, XII, DA CF. 1. O art. 5º, XII, da CF garante, entre outras, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e da comunicação de dados. 2. A natureza da correspondência e da comunicação de dados é elemento que matiza e limita a garantia constitucional, em face da finalidade da norma: preservar o sigilo da correspondência – manuscrita, impressa ou eletrônica – da pessoa – física ou jurídica – diante de terceiros. 3. Ora, se o meio de comunicação é o institucional – da pessoa jurídica -, não há de se falar em violação do sigilo de correspondência, seja impressa ou eletrônica, pela própria empresa, uma vez que, em princípio, o conteúdo deve ou pode ser conhecido por ela. (…). 5. Portanto, não há dano moral a ser indenizado, em se tratando de verificação, por parte da empresa, do conteúdo do correio eletrônico do empregado, quando corporativo, havendo suspeita de divulgação de material pornográfico, como no caso dos autos. (TST, ED-RR – 996100-34.2004.5.09.0015 Data de Julgamento: 18/02/2009, Relator Ministro: Ives Gandra Martins Filho, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/02/2009).

Na doutrina, esses precedentes são vistos com reservas. Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “em linha de princípio, salvo uma ponderação mais robusta, não nos parece razoável permitir à empresa invadir a privacidade do empregado, tendo tendo acesso ao que é escrito. Em especial, quando o empregador não permite ao seu obreiro o acesso ao email particular, obrigando à utilização do email corporativo. Parece que é prestigiar mais o patrimônio do que a personalidade. O ter, em lugar do ser.” (Direito Civil – Teoria Geral, 8ª ed. 2009, p. 197).