I – Considerações iniciais
No presente texto, procuraremos abordar um tema extremamente relevante, que, constantemente, é trazida no âmbito das provas de concurso. Trata-se dos limites do controle judicial dos atos discricionários.
Como todos sabemos, na realização das atividades que lhe são peculiares, tais como a prestação de serviços públicos, o poder de polícia ou a intervenção no domínio econômico, a Administração Pública vale-se de uma quantidade considerável de atos administrativos, os quais se projetam sobre a esfera de interesses não apenas dos agentes públicos, mas dos particulares.
Nesse contexto, comumente são questionados os limites da atuação administrativa discricionária, indagando-se até que ponto o Poder Judiciário pode exercer controle sobre esses atos, sobretudo, tendo-se como norte o princípio da separação dos podere.
Na abordagem desse tema, analisaremos inicialmente o conceito e os elementos do ato administrativo; em seguida, serão diferenciados atos vinculados e discricionários, para, por fim, ingressarmos no âmago da questão.
II – Conceito e elementos do ato administrativo
Em um sentido amplo, pode-se dizer que atos administrativos são declarações do Estado ou de particulares no exercício de prerrogativas públicas (ex. concessionário de serviço público), expedidas sob regime jurídico de Direito Público, com a finalidade de concretizar ou dar cumprimento a lei, sujeitas à possibilidade de controle jurisdicional. (Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 2003, p. 352).
Para a doutrina majoritária, o ato administrativo é constituído por cinco elementos ou requisitos: o sujeito , o objeto, a forma, o motivo e a finalidade.
Chama-se sujeito do ato aquele a quem se atribui a competência para praticá-lo.
Objeto é o efeito jurídico que o ato produz, isto é, o conteúdo da manifestação de vontade estatal.
Por sua vez, a forma é o revestimento exterior do ato. Esse elemento, em sentido estrito, resume-se à exteriorização do ato; em sentido amplo, engloba o procedimento, isto é, os ritos a serem observadas anteriormente à produção do ato.
Motivo são os pressupostos de fato e de direito que fundamentam a realização do ato; não se confunde com a motivação (“exposição de motivos”), que pertence ao âmbito das formalidades do ato.
Assim, serão considerados motivos do ato administrativo não apenas os fatos que ensejaram a sua prática como também a previsão legal que os tornou juridicamente qualificados. É que o que ocorre com o ato de concessão de aposentadoria compulsória, cujo motivo é fato biológico de um servidor público ocupante de cargo efetivo completar 70 anos (art. 40, § 1º, inciso II, da CF).
Por fim, a finalidade é o resultado que Administração que procura alcançar com a prática do ato. Em sentido amplo, a finalidade é sempre o atendendimento ao “interesse público”; em sentido estrito, é aquilo que a lei, em cada caso, elege como fim. Por exemplo: ato administrativo que interdita fábrica poluidora possui, com finalidade específica, a proteção ao meio ambiente e a saúde das pessoas.
Registre-se que essa visão estrutural dos atos administrativos, além de ser adotado pela maioria dos publicistas, foi encampada pela Lei nº 4.717/65, razão pela qual sua análise é essencial.
III – Atos discricionários e atos vinculados
Nos atos administrativos vinculados, a Administração Pública age de forma mecânica e sem margem de liberdade. Assim, ocorrendo uma situação descrita lei apta a conferir um direito ou interesse, a autoridade competente deve emitir um ato, garantindo ao beneficiário o gozo ou exercício de uma faculdade.
São exemplos de atos vinculados a concessão de aposentadoria e a licença para construir. Nessas hipóteses, verificando-se a reunião dos requisitos legais por quem de direito, tais atos devem ser praticados.
Por sua vez, nos atos discricionários, a lei concede à Administração a possibilidade de agir com base juízos de conveniência e de oportunidade, acerca da própria emissão do ato ou de seu conteúdo. Nesses atos, a lei, ao prever uma determinada competência, intencionalmente outorga um espaço para a livre decisão da Administração Pública.
Na prática, pode-se dizer que a discricionariedade existe, em regra, no âmbito do motivo e do objeto do ato. Excepcionalmente, pode existir na forma do ato; porém, nunca é possível encontrá-la na competência e na finalidade. Exemplo de discricionariedade no motivo: a lei valeu-se de um termo aberto (“ordem pública”, “interesse social”, “conveniência do serviço”) para definir o momento de atuação da administração. Por sua vez, há discricionariedade no objeto quando a lei prevê vários conteúdos ou efeitos decorrentes da prática do ato, cabendo à Administração escolher a mais apropriada ao caso concreto.
Nesse contexto, recebe o nome de mérito administrativo “o poder conferido pela lei ao administrador para que ele, nos atos discricionários, decida sobre a oportunidade e conveniência de sua prática” (Alexandrino e Paulo, Direito Administrativo, 2006, p. 317).
IV – Controle judicial dos atos discricionários
A possibilidade de controle judicial dos atos vinculados não deixa margem de dúvida, sendo plenamente cabível. Assim, a negativa de concessão de um ato a quem dele faça jus (comportamento omissivo) ou a concessão ilícita de um ato a quem não tenha preenchido os requisitos legais são hipóteses explícitas em que o Poder Judiciário poderá ser invocado a intervir nas condutas administrativas.
Da mesma forma, é intuitivo que os atos discricionários, quando discrepam dos parâmetros legais, violando ou ameaçando direitos, são passíveis de controle jurisdicional.
Na realidade, a controvérsia reside nos limites da apreciação judicial desses atos.
Segundo o entendimento prevalente, nada obsta a que juízes e tribunais procedam a um controle no tocante à legalidade do ato discricionário, sobretudo, no que diz respeito à competência, à forma e à finalidade legalmente delimitadas.
A grande dúvida reside em saber se o mérito do ato, isto é, a margem de liberdade de escolha atribuída por lei ao administrador, pode ser objeto de análise judicial.
Nesse ponto, os doutrinadores são unânimes no sentido de que não podem os juízes, sob pena de agressão ao princípio da separação dos poderes, se imiscuir no âmago das escolhas e dos posicionamentos administrativos tomados dentro dos limites da lei. O que pode ser realizado pelos magistrados é um controle dos limites de atuação discricionária, com vistas a verificar se ela execedeu ou não as balizas normativas.
Nesse contexto, são poderosos instrumentos de controle do uso da competência discricionária: a) o princípio da proporcionalidade; b) a teoria dos motivos determinantes; c) a teoria do desvio de poder.
Pela proporcionalidade, poder-se-á aferir se a opção tomada pelo administrador, no uso de uma competência discricionária, é instrumentalmente adequada para o fim almejado, bem como se existem conteúdos normativos menos gravosos para a consecução do fim por ele buscado (proibição do excesso).
Há, portanto, a possibilidade de controle judicial no que diz respeito à adequação e à necessidade do ato. Assim, será inadequado o ato cujo conteúdo for incapaz de alcançar um dado objetivo; será desnecessário quando, embora possa alcançar um dado fim, ele o faz de maneira gravosa, a qual poderia ser substituída por outra menos excessiva.
Pela teoria dos motivos determinantes, a Administração ficará vinculada à veracidade dos motivos que tiver declarado na emissão do ato, sob pena de nulidade. Assim, se um administrador declara que exonerou servidor ocupante de cargo em comissão pelo fato de haver necessidade de contenção de despesas, o ato será nulo caso se verifique que uma nova pessoa foi nomeada, eis que inverídico o motivo antes apontado (contingenciamento de despesas).
Por fim, de acordo com a teoria do desvio de poder, se a administração, agindo com base no poder discricionário, procurar alcançar fim diverso daquele previsto em lei, o ato poderá ser invalidado. É o que ocorre quando se usa da remoção de servidor como instrumento de punição e intimidação. Nesse caso, houve um claro desvirtuamento da finalidade específica do instituto, o que implica na possibilidade de invalidação do ato.
IV – Conclusão
Do exposto, verifica-se que os atos administrativos discricionários podem ser objeto de amplo controle judicial no tocante ao sujeito, à forma e à finalidade. Ademais, são poderosos instrumentos de fiscalização dos limites da atuação discricionária o princípio da proporcionalidade, a teoria dos motivos determinantes e a teoria do desvio de finalidade. Nesses casos, o objeto da análise judicial consiste na verificação do respeito aos limites legais da discricionariedade. Contudo, proíbe-se a análise do mérito administrativo, preservando-se a separação das funções estatais e a liberdade de agir das autoridades administrativas.
Francisco Falconi