Nota sobre o princípio da dignidade da pessoa humana

31 de julho de 2008

Qual o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da CF?

 

           Antes de enfrentar essa questão, uma advertência: a fixação do sentido e alcance da dignidade humana, como ressaltou Wilson Steinmetz, não pode ser “formulada, abstratamente, de uma vez por todas”.

Assim, é possível fazer uma descrição aproximada de seu conteúdo, afinal, os princípios são normas abertas, carregadas de abstração e generalidade.

Os juristas em geral entendem que a idéia básica de dignidade da pessoa humana repousa no pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant. Nessa ótica, a dignidade humana consiste na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, onde o homem é um fim em si mesmo e não uma mera coisa.  

Sob o ponto de vista jurídico, essas idéias podem ser traduzidas em duas dimensões normativas: uma negativa e outra positiva.

O conteúdo negativo desse princípio impõe ao Estado e aos particulares a proibição de degradação do ser humano por meio de comportamentos espúrios, como a funcionalização (política, religiosa, econômica) do homem, a sua “coisificação”, a realização de humilhações ou o estabelecimento de submissão a uma posição servil.

Já o conteúdo positiva da dignidade humana consistente no dever de reconhecimento, de afirmação e de promoção da pessoa pelo Estado e pela comunidade.

Na jurisprudência, há muitas decisões reconhecendo a violação à dignidade humana por força de atuações ilegítimas do Estado, isto é, comportamentos que violaram o conteúdo negativo de tal princípio, por meio do tratamento de pessoas como objetos. Contudo, não são comuns decisões reconhecendo a dimensão objetiva descrita sucintamente acima.


Questão comentada – CESPE – Direito Administrativo

29 de julho de 2008

PGE-ES – 27-04-2008

           

Questão: Em cada um dos itens seguintes, é apresentada uma observação feita por secretário estadual sobre atos administrativos que sua pasta realizara. Julgue-as de acordo com o entendimento predominante no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF.

 

21. Um servidor deve pedir demissão porque irá tomar posse em outro cargo público.

22. A circunstância de haver removido um servidor do hospital estadual localizado na capital para longínqua cidade no interior, como punição pelas reiteradas ausências aos plantões, não caracteriza desvio de finalidade porque, como secretário, agi dentro de minha competência de lotar servidores onde for melhor para o interesse público.

23. Como secretário, expedi ato administrativo enunciativo para disciplinar o funcionamento da administração e a conduta funcional dos servidores da secretaria sob minha responsabilidade.

24. Como secretário estadual, não posso determinar a demolição de prédio com alvará de construção legalmente expedido, mesmo diante de lei nova que, em tese, proibiria a edificação, porque não se pode retroagir a nova norma para prejudicar o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.

 

Comentários:

 

A presente questão trata da temática dos atos administrativos, à qual já fizemos referência em posts recentes. Embora o início do enunciado refira-se ao entendimento do STF e do STJ, a questão aborda temas que podem ser encontrados nos Manuais que estão aí nas livrarias, como o de Maria Sylvia ou Hely Lopes. Vejamos cada um dos itens:

 

Item 21. A presente assertiva encontra-se manifestamente errada. Com efeito, tecnicamente não existe a figura do pedido de demissão no âmbito dos regimes jurídicos estatutários dos entes da federação. Note-se que a questão usa a expressão “para tomar posse em outro cargo público”, o que indica que realmente o elaborador aborda a situação de servidor enquadrado no regime estatutário. Nesse caso, o correto seria o agente público pedir exoneração para tomar posse em outro cargo publico.  

 Item 22. Tal assertiva encontra-se igualmente errada. Ocorre desvio de finalidade quando o administrador público pratica ato desvirtuando o fim previsto implícita ou explicitamente em lei. Na realidade, a remoção não tem por objetivo punir servidor, mas redistribuir pessoal, diante das necessidades do serviço. Assim, houve de fato o desvio de função na atuação do secretário ao remover servidor para puni-la em face de suas “reiteradas ausências aos plantões”. Trata-se do exemplo clássico de desvio de finalidade.

 Item 23. Quem conhece a classificação dos atos administrativos de Hely Lopes não terá a mínima dificuldade para acertar esse item. Lembre-se que nós a comentamos em post de 15 de julho de 2008. Naquela ocasião, vimos que enunciativos são os atos em que a Administração atesta ou reconhece situações de fato ou de direito, tais como as certidões. Na realidade, a organização e funcionamento de órgão ou entidade dão-se mediante atos ordinatórios. Logo a questão encontra-se errada.

 Item 24. Uma vez edificada a obra, a licença para construir, concedia conforme os ditames da ordem jurídica então vigente, constitui ato jurídico perfeito, razão pela qual a lei posterior não pode retroagir para atingi-la, estando, portanto, correta a assertiva.

Logo, estão errados os itens 21,22 e 23; está correto o item 24, tudo conforme o gabarito definitivo


Bastidores da possível candidatura de Ellen Gracie à Corte de Haia

28 de julho de 2008

            Em outubro, a Assembléia Geral da ONU escolherá um nome para integrar a Corte Internacional de Justiça, localizada na cidade de Haia (Holanda). Segundo informações veiculadas na grande imprensa, existe a possibilidade de a vaga ser preenchida novamente por um jurista brasileiro.

            A presença de mais um brasileiro em Haia é uma das metas do Ministério das Relações Exteriores, que está trabalhando pesado nesse sentido. Procura-se repetir o feito protagonizado pelo jurista mineiro Francisco Rezek, que integrou a Corte Internacional de Justiça de 1997 a 2006.

            O problema está na politicagem do governo brasileiro, mais especificamente do Presidente Lula e do Ministro Nelson Jobim, que estão tentando emplacar o nome da Ministra do STF, Ellen Gracie, aos “45 minutos do segundo tempo”.

            Na realidade, desde fevereiro de 2007, a República Federativa do Brasil lançou o nome de Antônio Augusto Cançado Trindade para juiz da Corte Internacional de Justiça.

            Ph.D. em Direito Internacional por Cambridge, Cançado trindade foi Juiz e Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Além disso, é Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco.

            Segundo o professor da UnB George Bandeira Galindo, Cançado Trindade “é, hoje, o jurista brasileiro mais bem preparado para operar tais mudanças por sua projeção mundial como especialista em direito internacional”.

            Os predicados intelectuais de Cançado Trindade são muito mais elevados que os da Ministra Ellen Gracie. Ao contrário da preferida de Lula e Jobim, Cançado Trindade é um homem do Direito Internacional, com notáveis serviços prestados nessa área. Contudo, o que pesa favoravelmente à Ministra é sua descendência americana e as boas relações que mantém com Ministros da Suprema Corte americana, sendo, portanto, uma candidata ao gosto do Tio Sam. 

            Ao que tudo indica, com a possível saída de Gracie, procura-se abrir mais uma cadeira no STF a ser preenchida por Lula. O escolhido para ocupar a vaga da ministra seria o petista Tarso Genro.

            Diante dos tropeços e da indecisão do Governo brasileiro, parece mesmo que vamos acabar ficando sem vaga em Haia.


Jurisprudência Selecionada nº 02 – Administrativo e constitucional

28 de julho de 2008

            Com a finalidade de divulgar a jusrisprudência do STF, seguem abaixo ementas de acórdãos referentes ao Direito Administrativo. A ênfase desta semana é para o servidor público (concurso e processo disciplinar), bem como para o controle das políticas públicas pelo Judiciário.

 

SERVIDOR PÚBLICO. Concurso público. Cargo público. Ministério Público federal. Requisito de tempo de atividade jurídica na condição de bacharel em direito. Contagem da data de conclusão do curso, não da colação de grau. Cômputo do tempo de curso de pós-graduação na área jurídica. Aplicação do art. 1º, § único, da Resolução nº 4/2006, do Conselho Nacional do Ministério Público. Escola da Magistratura do RJ. Direito líquido e certo reconhecido. Liminar confirmada. Concessão de mandado de segurança. Precedente. Inteligência do art. 129, § 3º, da CF. Os três anos de atividade jurídica exigidos ao candidato para inscrição definitiva em concurso de ingresso na carreira do Ministério Público contam-se da data de conclusão do curso de Direito, não da colação de grau, e incluem tempo de curso de pós-graduação na área jurídica.

STF, MS 26682 / DF, Relator:  Min. CEZAR PELUSO, Julgamento:  15/05/2008, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação DJe-117  DIVULG 26-06-2008  PUBLIC 27-06-2008

 

Mandado Segurança. 2. Servidor Público. 3. Demissão. 4. Comissão disciplinar presidida por Promotor de Justiça, que se enquadra no conceito lato sensu de servidor público. 5. A demissão da impetrante grávida baseou-se em justa causa. 6. Legalidade do ato de demissão. 7. Ordem indeferida.

(STF, MS 23474 / DF, Relator:  Min. GILMAR MENDES, Julgamento:  14/09/2006, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação DJ 23-02-2007 PP-00017, LEXSTF v. 29, n. 341, 2007, p. 95-105)

 

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO POR ATO DE IMPROBIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PENA MENOS SEVERA. ART. 128 DO CPC.

O órgão do Ministério Público, que oficiou na instância de origem, na forma do art. 10 da Lei nº 1.533/51, tem legitimidade para recorrer da decisão proferida em mandado de segurança.

Embora não caiba ao Judiciário substituir-se à Administração, em tema de punição do servidor, cabe-lhe determinar a esta a aplicação de reprimenda menos severa, compatível com a falta cometida e a previsão legal.

 Incidência do art. 128 do CPC — que manda o juiz decidir a lide nos limites em que foi proposta –, dado que a inicial não pede, nem mesmo alternativamente, pena mais branda que a demissão.

Segundo o processo disciplinar, conduzido regularmente, o investigado respondeu por atos de improbidade em processos licitatórios, o que acarreta a pena de demissão, na forma da lei de regência. Conclusão diversa demandaria exame e reavaliação de todas as provas colhidas, procedimento incomportável na via estreita do mandado de segurança.

Recurso ordinário a que se nega provimento.

(STF, RMS 25627 / DF, Relator:  Min. CARLOS BRITTO, Julgamento:  15/05/2007, Órgão Julgador:  Primeira Turma, Publicação, DJe-126  DIVULG 18-10-2007  PUBLIC 19-10-2007)

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – EDUCAÇÃO INFANTIL – DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) – COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – RECURSO IMPROVIDO.

(…).

– A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

– Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

– Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina.

(STF, RE-AgR 410715 / SP, Relator:  Min. CELSO DE MELLO, Julgamento:  22/11/2005, Órgão Julgador:  Segunda Turma, Publicação: DJ   03-02-2006 PP-00076, RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300)


A incorporação dos tratados internacionais no Direito interno brasileiro

27 de julho de 2008

I – Considerações iniciais    

 

            Depois que postamos o texto referente aos tratados sobre direito humanos (22/07/2008), muitas pessoas pediram um post específico sobre o processo de incorporação de tratados no Brasil.

            Atendendo a nossos leitores, aqui vão algumas considerações sobre esse tema. Inicialmente, comentaremos a incorporação dos tratados em geral para só então abordarmos a incorporação dos tratados sobre direitos humanos.

 

II – Incorporação dos tratados em geral

 

            Na atual regime jurídico brasileiro atual, os tratados em geral, para ingressarem na ordem jurídica interna, devem ser submetidos a um longo processo. Desde o início de sua formação até a incorporação, são identificadas seis fases: a) negociação; b) assinatura; c) mensagem ao Congresso; d) aprovação parlamentar mediante decreto legislativo; e) ratificação; f) promulgação do texto do tratado mediante decreto presidencial.

            As duas primeiras fases (negociação e assinatura), por força do art. 84, inciso VIII, da CF, são de competência do Presidente da República. Contudo, em razão da possibilidade de delegação, quem as executa na prática são o Ministro das Relações Exteriores e os Chefes de Missões Diplomáticas.

            Uma vez assinado, começa a fase interna de aprovação e execução do tratado, por meio uma mensagem do Presidente ao Congresso Nacional. Essa mensagem é um ato político em que são remetidos a justificativa e o inteiro teor do tratado.

            Recebida a mensagem, formaliza-se a procedimento legislativo de aprovação. Iniciando-se na Câmara dos Deputados (tal como os projetos de lei de iniciativa do Presidente da República) e terminando no Senado, esse procedimento parlamentar visa à edição de um decreto legislativo, cuja promulgação é deflagrada pelo Presidente do Senado.

            Conforme ensina Francisco Rezek, “o decreto legislativo exprime unicamente a aprovação”, razão pela qual ele não é promulgando na hipótese de rejeição legislativa ao tratado. Nesse caso, como bem registro aquele jurista, “cabe apenas a comunicação, mediante mensagem, ao Presidente da República”. (REZEK, Francisco. Parlamento e tratados: o modelo constitucional do Brasil. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n.162, abr./jun. 2004).

            Caso obtida a aprovação do Congresso, o decreto-legislativo será remetido ao Presidente da República para a ratificação. Contudo, uma vez ratificados, os tratados em geral ainda não surtem efeitos, quer na ordem interna, quer na ordem internacional.

              Para produzirem efeitos perante o direito internacional, faz-se necessário o envio do instrumento ratificado pelo Presidente da República ao depositário do tratado, que o protocolará e enviará cópia aos outros Estados que integram o pacto internacional.

            Para produzir efeitos na ordem interna, deve ocorrer a promulgação de Decreto do Poder Executivo (ato com força de lei) pelo Presidente. Segundo o Ministro Celso de Mello do STF, a edição desse ato presidencial acarreta três efeitos: a) promulgação do tratado; b) publicação oficial de seu texto; c) executoriedade do ato internacional que passa então a “vincular e obrigar no plano no plano do direito positivo interno”, tal como uma lei ordinária (STF, ADI nº 1.480-3/DF, DJ 18/05/2001).

            Por fim, cabem aqui duas observações: a) tratados em geral não podem versar sobre temas afetos à lei complementar, pois possuem força de leis ordinárias (STF, ADI nº 1.480-3/DF, DJ 18/05/2001); b) tratados revogam leis ordinárias anteriores; porém, esses diplomas internacionais não são revogados por leis posteriores. Estas últimas apenas afastam sua aplicação enquanto vigorarem. Caso revogada a lei posterior incompatível, o tratado volta a produzir efeitos.

 

 III – Incorporação de tratados sobre direitos humanos

 

            Logo após a promulgação da Constituição de 1988, autores como Flávia Piovesan e Cançado Trindade sustentaram que o art. 5º, § 2º, da CF colocaria os tratados sobre direitos humanos no nível das normas constitucionais.

            Assim, o procedimento de aprovação dos tratados sobre direitos humanos seria igual ao dos demais tratados com o detalhe de que a ratificação deles pelo Chefe de Estado, após aprovação parlamentar mediante decreto legislativo, garantir-lhes-ia o status constitucional.

            Inclusive, Cançado Trindade foi quem elaborou o art. 5, § 2º, da CF. Segundo esse jurista, “o propósito do disposto nos parágrafos 2 e 1 do artigo 5 da Constituição não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direita ao Poder Judiciário nacional da normativa internacional de proteção, alçada a nível Constitucional”(Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional, apud MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional, 2ª ed, p. 695).

            Contudo, o STF, numa decisão polêmica (HC 72.131) que se tornou jurisprudência por ter sido reiterada em outros casos, rejeitou essa tese libertária, ao argumento de que ela permitiria mudanças na Constituição sem o procedimento de elaboração previsto no art. 60 da Constituição.

            Tudo parecia perdido; então surge a EC nº 45/2003, a qual introduziu o § 3º ao art. 5º da CF, cujo teor é o seguinte: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

            É inegável que esse dispositivo confirmou a jurisprudência do STF no sentido de que a simples ratificação de um tratado, após sua aprovação padrão pelo Congresso, não lhe dá estatura constitucional. Para tanto, a aprovação deve ocorrer conforme o rito das emendas. Contudo, o art. 5, § 3º, mostrou que os tratados sobre direitos humanos possuem um especial destaque na ordem constitucional, o que fez ressurgir das cinzas o debate sobre a hierarquia deles no direito interno.

            Assim, caso um tratado sobre direitos humanos tiver sido ou for aprovado com base no rito tradicional (decreto legislativo e promulgação via Decreto Executivo), ao que tudo indica, esse pacto internacional terá estatura “supralegal”, isto é, estará abaixo da Constituição, mas acima das leis, tal como sugerido pelo Ministro Gilmar Mendes. Contudo, deve-se esperar o resultado do julgamento dos RE nº 466.343/SP e do RE nº 349.703/RS, aos quais já fizemos referências em um post recente.

            Parece-nos que a tese da supralegalidade representa uma evolução. Com efeito, o art. 5º, § 3º, é uma realidade incontestável. Logo, à primeira vista, não há que se falar em estatura constitucional de tratado de direitos humanos sem a aprovação mediante o rito das emendas. Contudo, o art. 4º, inciso II, da CF prevê a prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental, o que mostra a importância desses tratados que versem sobre esse tema.

            A grande dificuldade será a definição do que é um tratado sobre direitos humanos. Há casos em que é possível identificá-lo sem maiores problemas, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica; em outros casos, prima facie, vê-se que não se trata de um tratado sobre direitos humanos, a exemplo de um pacto ortográfico e lingüístico. Porém, haverá casos que certamente gerarão dúvidas, para as quais os juristas não têm respostas. 

            Eis, portanto, que se tem a dizer sobre esse tema altamente relevante da incorporação dos tratados ao direito brasileiro.  

 

IV – Links

 

            Para uma visão mais aprofundada acerca do procedimento de incorporação dos tratados, clique aqui e veja o texto de Francisco Rezek ao qual fizemos referência.

 


Curiosidades do Direito Constitucional norte-americano: a 27ª Emenda

24 de julho de 2008

           Há coisas extremamente curiosas no Direito Constitucional dos Estados Unidos. Uma delas é a 27ª Emenda à Constituição daquele país. Até onde sabemos esse foi o último aditamento sofrido pelo lendário texto constitucional aprovado em 1787. 

          O conteúdo da referida Emenda, cuja aprovação definitiva deu-se em 07/05/1992, não é completamente estranho: lei que alterar a remuneração de deputados e senadores somente entrará em vigor na legislatura seguinte. No Brasil, regra similar é prevista para a hipótese de aumentos de remuneração dos vereadores (art. 29, inciso VI, da CF), não havendo disciplina similar em relação aos deputados, estaduais e federais, e senadores.

          O fato curioso são as vicissitudes da aprovação da 27ª Emenda. Segundo o prof. Inocêncio Mártires Coelho, “proposta por James Madison, foi aprovada pelo Congresso em 1789 e submetida aos Estados para a ratificação, a fim de se incorporar ao texto da Constituição, que só veio a ocorrer – mais de 200 anos – 7/5/1992, quando obteve a 38ª manifestação favorável, do Estado de Michigan”.

           Isso se deve ao fato de que a Constituição dos EUA possui um processo muito complexo de modificação formal. Além da aprovação pelo voto de 2/3 dos membros de ambas as casas (senado e câmara), é necessária a ratificação de ¾ dos Estados, o que pode prolongar os processos de emenda por décadas e até séculos. Aliás, esse é um dos fatores pelos quais a atualização da Constituição americana se dá, em grande parte, pelas interpretações da Suprema Corte que procuram manter o velho texto supremo em consonância com as mudanças de valor materializadas na sociedade.

           Para ver o texto do qual foi extraída a citação acima, clique aqui.


Tratados sobre direitos humanos e a prisão civil nos casos de alienação fiduciária em garantia

22 de julho de 2008

I – Considerações iniciais               

 

                Encontram-se pendentes de julgamento no STF dois casos da maior relevância para a temática dos direitos humanos. Estamos falando do RE nº 466.343/SP e do RE nº 349.703/RS, nos quais se discute, como tema central, a constitucionalidade da prisão por dívida nos casos de alienação fiduciária em garantia, prevista no art. 4º do autoritário Decreto-lei nº 911/69, editado em plena ditadura militar.  

                Os recursos são emblemáticos por duas razões. Além de promoverem um novo debate, no âmbito da atual composição da Suprema Corte, sobre a compatibilidade do art. 4º daquele Decreto-lei com a Constituição de 1988, eles propiciaram o redirecionamento das discussões para um tema conexo da maior relevância: a hierarquia dos tratados ratificados pelo Brasil que versem sobre direitos humanos.

                

II – A jurisprudência tradicional do STF

 

Até o final da década de 70, o Supremo, na temática da incorporação de tratados, não possuía uma jurisprudência firme sobre esse assunto. Os julgados oscilavam entre posições opostas, ora sustentando a prevalência hierárquica dos tratados sobre as leis, ora considerando-os equiparados às leis.

Em 1977, surge um divisor de águas: o Recurso Especial nº 80.004/SE, no qual se assentou o entendimento de que os tratados em geral possuem a mesma hierarquia das leis ordinárias. (REZEK, Francisco. Parlamento e tratados: o modelo constitucional do Brasil. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n.162, abr./jun. 2004).

                Contudo, apesar de possuírem igual hierarquia, observou-se que a lei interna não teria aptidão para derrogar um tratado. Assim, promulgada lei posterior incompatível, não há uma mera aplicação do brocardo “lei posterior revoga a anterior”. Nesse conflito de normas, afasta-se a aplicação do tratado não sendo declarada a sua derrogação. Caso a lei posterior incompatível viesse a ser revogada, o tratado voltaria a produzir efeitos (REZEK, Francisco. Op. cit.).

                Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, um novo cenário surgiu em virtude de seu art. 5º, § 2º, que estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

                Para respeitável corrente doutrina, os tratados e convenções sobre Direitos Humanos seriam verdadeiras normas constitucionais. Uma vez ratificados, integrariam, de forma automática, o bloco normativo da constituição material.

                Contudo, essa interpretação atribuída ao art. 5º, § 2º, da CF não foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, o qual pontificou a subsistência, na nova ordem constitucional, da estatura paritária de leis ordinárias e tratados, ainda que estes últimos tenham por objeto direitos humanos.

                O caso do qual surgiu esse precedente conservador dizia respeito à prisão civil do depositário infiel de bem alienado fiduciariamente. Tratava-se precisamente do HC 72.131, julgado em 22/11/1995, no qual o Plenário do STF entendeu que essa medida coercitiva encontra-se agasalhada pelo disposto no artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988.

                Assim, naquele julgamento, a corrente majoritária assentou que, apesar de a Constituição proibir a prisão civil por dívida, o próprio texto constitucional abre exceções a essa regra, dentre as quais a hipótese de quem não entrega bem sobre o qual tinha a posse imediata via depósito, seja voluntário ou legal. Por outro lado, assentou-se a natureza infra-constitucional do Pacto de São José da Costa Rica, razão pela qual ele, por ser norma geral, não teria revogado, o art. 4º do Decreto-lei nº 911/69, que seria regra específica.          

 

III – A revisão da jurisprudência sobre prisão por dívida de depositário infiel

 

                Por força da EC nº 45/2004, que introduziu a chamada “Reforma do Judiciário”, o constituinte derivado acrescentou um § 3º ao art. 5º, dispondo o seguinte: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

                O novo texto não deixa dúvida: os tratados e convenções sobre direitos humanos somente terão envergadura constitucional caso aprovados pelo Congresso Nacional, mediante o processo legislativo das Emendas Constitucionais. Por isso, após a referida emenda, aparentemente perdeu substância a tese de estatura constitucional automática dos tratados de direitos humanos. Contudo, a reforma mostrou de forma inequívoca o caráter especial dos tratados que versam sobre direitos humanos. (Cf. Gilmar Mendes, Curso de Direito Constitucional, 2ª ed, 2008, p. 696).

                Assim, a grande questão que se coloca consiste em saber a hierarquia dos tratados de direitos humanos já ratificados pelo Brasil e que não se submeteram ao procedimento do art. 5º, § 3º, da CF, com redação dada pela EC nº 45/2004. É o caso do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. Que hierarquia possuem esses tratados?

                Nesse contexto favorável a novas discussões, vieram a lume os RE’s nº 466.343/SP e nº 349.703/RS, nos quais o STF passou a rever a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária em garantia (art. 4º do Decreto Lei 911/69) e, por consequência, o problema  da hierarquia dos tratados sobre direitos humanos.

                Nesse momento, já existem 8 votos (César Peluso, Gilmar Mendes, Lewandowski, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Carlos Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello) no sentido de que o art. 4º do DL 911/69 “não pode ser aplicado em todo o seu alcance, por inconstitucionalidade manifesta”. Assim, apesar de os julgamentos estarem pendentes em virtude de pedido de vistas do Ministro Menezes Direito, já se pode dizer com razoável certeza que não mais persistirá no ordenamento jurídico pátrio a prisão por dívida nos casos de alienação fiduciária.

                Além disso, conforme já exposto, os debates nos recursos acima mencionados promoveram a discussão de outro tema da maior relevância: a hierarquia dos tratados ratificados pelo Brasil que versam sobre direitos humanos. Até agora, 06 Ministros (César Peluso, Lewandowski, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Carlos Britto, Marco Aurélio) aderiram à tese do Ministro Gilmar Mendes, para quem, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos são supralegais:

 

(…) pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. É que o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.”

                 

                A surpresa ficou por conta do voto do Ministro Celso de Mello. Admitindo a inconstitucionalidade da prisão por dívida do Decreto nº 911/69, o referido membro do STF, antes ferrenho defensor da paridade entre leis e tratados, inovou ao se posicionar da seguinte forma:

                a) “os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2º do art. 5º da CF”;

b) “os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3º do art. 5º da CF”;

c) “aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso País aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade”. (V. Informativo STF 498).

                 

VI – Conclusão

 

                Apesar do pedido de vistas do Ministro Menezes Direito, pode-se afirmar, com certa segurança, que não mais persistirá no ordenamento jurídico pátrio a prisão por dívida nos casos de alienação fiduciária, o que representa notável evolução na jurisprudência do STF.

                Por outro lado, encontra-se em aberto o problema da hierarquia dos tratados que versam sobre a proteção aos direitos humanos, sendo provável, em face da adesão de 07 Ministros, que a tese da supralegalidade irá prevalecer, não impedindo que esses atos normativos sejam submetidos ao procedimento do art. 5º, § 3º, para, somente assim, adquirirem a estatura constitucional.


Jurisprudência selecionada nº 01

21 de julho de 2008

             A partir de agora, este blog disponibilizará ementas de julgados relevantes dos Tribunais Superiores. É para começarmos a semana por dentro das tendências jurisprudenciais!

 

MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ANULAÇÃO DO XVIII CONCURSO PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. INOCORRÊNCIA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA.

I – O exame dos documentos que instruem os PCAs 371, 382 e 397 não autoriza a conclusão de que teria ocorrido afronta aos princípios da moralidade e da impessoalidade na realização do XVIII concurso para ingresso na carreira inicial da magistratura do Estado de Rondônia. II – Não é possível presumir a existência de má-fé ou a ocorrência de irregularidades pelo simples fato de que duas das candidatas aprovadas terem sido assessoras de desembargadores integrantes da banca examinadora. III – Segurança concedida.

STF, MS 26700 – RO, Relator:  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Julgamento:  21/05/2008, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação DJe-117  DIVULG 26-06-2008  PUBLIC 27-06-2008

 

INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Lei de Imprensa. Dano moral. Toda limitação, prévia e abstrata, ao valor de indenização por dano moral, objeto de juízo de equidade, é incompatível com o alcance da indenizabilidade irrestrita assegurada pela atual Constituição da República. Por isso, já não vige o disposto no art. 52 da Lei de Imprensa, o qual não foi recebido pelo ordenamento jurídico vigente.

STF, RE 447584 / RJ, Relator:  Min. CEZAR PELUSO, Julgamento:  28/11/2006, Órgão Julgador:  Segunda Turma, Publicação: DJ 16-03-2007 PP-00043, LEXSTF v. 29, n. 340, 2007, p. 263-279

 

RECURSO ADMINISTRATIVO – DEPÓSITO – § 2º DO ARTIGO 33 DO DECRETO Nº 70.235/72 – INCONSTITUCIONALIDADE. A garantia constitucional da ampla defesa afasta a exigência do depósito como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo.

STF, RE 388359 / PE, Relator:  Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento:  28/03/2007, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação: LEXSTF v. 29, n. 344, 2007, p. 184-218.

 


Cacciola, algemas e princípio da proporcionalidade

16 de julho de 2008

                                                                                     O caso 

 

                Salvatore Cacciola está prestes a retornar ao Brasil. Foragido a alguns anos, o banqueiro se encontrava na Itália, gozando da garantia constitucional que impede os cidadãos italianos de se submeterem à extradição.

                Pensando estar livre da condenação que lhe fora imposta, em 2005, pela Justiça Federal brasileira (13 anos de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro e de gestão fraudulenta), Cacciola foi passear em Mônaco e literalmente dançou. Foi capturado, em setembro de 2007, pela Interpol.

                Com o acolhimento do pedido de extradição feito pelo Brasil ao Príncipe de Mônaco, o banqueiro se encontra a caminho das terras tupiniquins.

                Contudo, os causídicos de Cacciola não perderam tempo e entraram com um Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, requerendo que os agentes da Polícia Federal se abstenham de pôr algemas no banqueiro em sua condução ao cárcere.

 

 

 O direito

                Na realidade, o caso submetido ao STJ, sob o ângulo do Direito Constitucional, apresenta uma típica colisão entre princípios: de um lado, o direito a horna e o núcleo da dignidade humana, que se expressa na prerrogativa de não ser tratado como objeto ou coisa; do outro, os princípios da ordem e da segurança públicas.

                Inegavelmente, o princípio da proporcionalidade acudirá o banqueiro. A razão é simples: para que um bem tão caro como a dignidade possa ser submetido a uma restrição, necessário se faz que exista uma boa justificativa para tanto.

                Nesse específico caso concreto, o uso de algemas mostra-se um excesso, pois é presumível que o preso, diante das circunstâncias, não se comportará de forma tal que justifique essa medida restritiva. 

                Conforme ensina a doutrina, a máxima da proporcionalidade é constituída por três dimensões: a) adequação, b) necessidade e c) proporcionalidade em sentido estrito.

                Por meio da adequação, questiona-se se a restrição é apta a alcançar a finalidade almejada. Por meio da necessidade, questiona-se se existe outro meio menos gravoso e igualmente eficaz para a consecução do objetivo. Por fim, na proporcionalidade em sentido estrito, pesam-se as desvantagens do meio em face das vantagens do fim.

               Do exposto, mostra-se evidente que, apesar de poder ser considerado adequado, o uso de algemas viola claramente a idéia de necessidade. É que a própria presença de dezenas de agentes da polícia será suficiente para manter a ordem e impedir que o preso idoso se porte de modo inadequado.  Por isso, somente por pressão da opinião pública é que o uso de algemas no banqueiro poderá ser mantido. À luz dos direitos fundamentais, trata-se de uma prática manifestamente inconstitucional.


Diferenças entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos

16 de julho de 2008

           

           As expressões direitos fundamentais e direitos humanos são meramente sinônimas? É possível diferenciá-las?

Sob o ponto de vista material, os termos “direitos humanos” e de “direitos fundamentais” possuem equivalente conteúdo, pois se referem a um conjunto de normas que objetivam proteger os bens jurídicos mais sensíveis no plano da proteção da dignidade humana.

 

O problema das fontes

 

Na realidade, as diferenças porventura existentes entre direitos fundamentais e direitos humanos estão ligadas às fontes dos quais estes direitos brotam.

Nesse norte, a expressão “direitos fundamentais” designa as posições jurídicas básicas reconhecidas como tais pelo Direito Constitucional positivo de um dado Estado, em um dado momento histórico. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 35)

Por sua vez, o termo “direitos humanos” refere-se aos direitos básicos da pessoa reconhecidos no âmbito dos documentos de Direito Internacional. Assim, humanos seriam os direitos cuja validade desconhece “fronteiras nacionais, comunidades éticas específicas, porque afirmados” por fontes de direito internacional. (SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 08 )

Alguns autores sustentam que a expressão “direitos humanos” também possui uma dimensão jusnaturalista. Assim, seria lícito empregá-la para designar posições jurídicas cuja validade advém não de uma fonte formal do direito, mas de uma concepção axiológica e intemporal de homem. (SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit. p, 09)

 Entretanto, parece-nos que razão assiste a Ingo Sarlet, para quem essa equiparação dos direitos humanos aos direitos naturais é questionável, uma vez que a própria positivação dos human rights em tratados internacionais revela traços de historicidade e de relatividade que os desprendem, ao menos em parte, do jusnaturalismo. (p. 36)

 

O problema dos titulares

 

Por fim, para além da questão das fontes, um detalhe serve para revelar outra sutil diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais. Trata-se do problema da titularização desses direitos pelas pessoas jurídicas de direito público.

            Estas últimas inegavelmente podem ser titulares de direitos fundamentais, opondo-os, inclusive, contra os particulares. Imagine-se, por exemplo, o caso do direito de propriedade de uma autarquia sendo violado por pessoas físicas.

            Essa possibilidade de os entes públicos serem titulares de direitos trata-se de um fenômeno decorrente das próprias características que os direitos fundamentais assumem ao serem constitucionalizados, sobretudo, quando se considera a dimensão objetiva.

            Contudo, salvo melhor juízo, não parece plausível falar-se em direitos humanos de um ente público, sob pena de uma total inadequação lingüística do termo empregado.

             Do exposto, parece lícito afirmar que, apesar de possuírem similar conteúdo normativo, os traços que diferenciam os direitos humanos e os direitos fundamentais são tênues, encontrando-se presentes no plano das fontes e no âmbito da titularização.

 

 

 


A classificação dos atos administrativos de Hely Lopes

15 de julho de 2008

Apesar de ter morrido há aproximadamente 20 anos, muitos dos escritos de Hely Lopes Meirelles são uma referência no âmbito do Direito Público  nacional. Sua obra mais conhecida, Direito Administrativo brasileiro, cuja derradeira atualização feita pelo velho Hely deu-se em 1990, continua sendo uma referência, sobretudo, naqueles vários pontos em que os atualizadores não foram obrigados a mexer, isto é, nas partes puramente doutrinárias e de teoria geral.  

Nesse contexto, mostra-se de grande valia para as provas e concursos a seguinte classificação, propagada por Hely, a qual constantemente é exigida pelas mais diversas bancas examinadoras. Ei-la:

Normativos são os atos administrativos marcados pela existência concomitante de abstração quanto ao conteúdo e generalidade quanto aos seus destinatários. Incluem-se, nessa moldura, os seguintes atos normativos: a) regimentos (atos normativos internos que, baseados no poder hierárquico, destinam-se a reger órgãos colegiados ou corporações legislativas); b) instruções ministeriais; c) decretos regulamentares; d) instruções normativas.

Negociais são atos destituídos de imperatividade, eis que seus efeitos são desejados pelo administrado. Exemplos: a) licença; b) autorização; c) admissão; d) permissão; e) nomeação; f) exoneração a pedido 

Ordinatórios são atos internos que, baseando-se no poder hierárquico, são direcionados aos próprios servidores públicos. Exemplos: circulares, avisos, portarias, instruções, provimentos, ordens de serviço, ofícios e despachos.

Enunciativos são atos por meio dos quais a Administração atesta ou reconhece uma situação de fato ou de direito. Exemplos: certidões, atestados, informações, pareceres, apostilas (atos enunciativos de uma situação anterior). 

Punitivos são aqueles que, lastreados no poder disciplinar ou poder de polícia, impõem sanções sobre os servidores e particulares. Atos punitivos externos: multas, interdição de atividade, destruição de coisas. Atos punitivos internos: advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria, etc. 


O controle judicial dos atos administrativos discricionários

15 de julho de 2008

 I – Considerações iniciais

 

             No presente texto, procuraremos abordar um tema extremamente relevante, que, constantemente, é trazida no âmbito das provas de concurso. Trata-se dos limites do controle judicial dos atos discricionários.

            Como todos sabemos,  na realização das atividades que lhe são peculiares, tais como a prestação de serviços públicos, o poder de polícia ou a intervenção no domínio econômico, a Administração Pública vale-se de uma quantidade considerável de atos administrativos, os quais se projetam sobre a esfera de interesses não apenas dos agentes públicos, mas dos particulares.

            Nesse contexto, comumente são questionados os limites da atuação administrativa discricionária, indagando-se até que ponto o Poder Judiciário pode exercer controle sobre esses atos, sobretudo, tendo-se como norte o princípio da separação dos podere.

            Na abordagem desse tema, analisaremos inicialmente o conceito e os elementos do ato administrativo; em seguida, serão diferenciados atos vinculados e discricionários, para, por fim, ingressarmos no âmago da questão.

 

II – Conceito e elementos do ato administrativo

 

            Em um sentido amplo, pode-se dizer que atos administrativos são declarações do Estado ou de particulares no exercício de prerrogativas públicas (ex. concessionário de serviço público), expedidas sob regime jurídico de Direito Público,  com a finalidade de concretizar ou dar cumprimento a lei, sujeitas à possibilidade de controle jurisdicional. (Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 2003, p. 352).

Para a doutrina majoritária, o ato administrativo é constituído por cinco elementos ou requisitos: o sujeito , o objeto, a forma, o motivo e a finalidade.

            Chama-se sujeito do ato aquele a quem se atribui a competência para praticá-lo.

Objeto é o efeito jurídico que o ato produz, isto é, o conteúdo da manifestação de vontade estatal.

Por sua vez, a forma é o revestimento exterior do ato. Esse elemento, em sentido estrito, resume-se à exteriorização do ato; em sentido amplo, engloba o procedimento, isto é, os ritos a serem observadas anteriormente à produção do ato. 

Motivo são os pressupostos de fato e de direito que fundamentam a realização do ato; não se confunde com a motivação (“exposição de motivos”), que pertence ao âmbito das formalidades do ato.

Assim, serão considerados motivos do ato administrativo não apenas os fatos que ensejaram a sua prática como também a previsão legal que os tornou juridicamente qualificados. É que o que ocorre com o ato de concessão de aposentadoria compulsória, cujo motivo é fato biológico de um servidor público ocupante de cargo efetivo completar 70 anos (art. 40, § 1º, inciso II, da CF). 

Por fim, a finalidade é o resultado que Administração que procura alcançar com a prática do ato. Em sentido amplo, a finalidade é sempre o atendendimento ao “interesse público”; em sentido estrito, é aquilo que a lei, em cada caso, elege como fim. Por exemplo: ato administrativo que interdita fábrica poluidora possui, com finalidade específica, a proteção ao meio ambiente e a saúde das pessoas.

Registre-se que essa visão estrutural dos atos administrativos, além de ser adotado pela maioria dos publicistas, foi encampada pela Lei nº 4.717/65, razão pela qual sua análise é essencial.

 

III – Atos discricionários e atos vinculados

 

            Nos atos administrativos vinculados, a Administração Pública age de forma mecânica e sem margem de liberdade. Assim, ocorrendo uma situação descrita lei apta a conferir um direito ou interesse, a autoridade competente deve emitir um ato, garantindo ao beneficiário o gozo ou exercício de uma faculdade.

            São exemplos de atos vinculados a concessão de aposentadoria e a licença para construir. Nessas hipóteses, verificando-se a reunião dos requisitos legais por quem de direito, tais atos devem ser praticados.

Por sua vez, nos atos discricionários, a lei concede à Administração a possibilidade de agir com base juízos de conveniência e de oportunidade, acerca da própria emissão do ato ou de seu conteúdo. Nesses atos, a lei, ao prever uma determinada competência, intencionalmente outorga um espaço para a livre decisão da Administração Pública.

Na prática, pode-se dizer que a discricionariedade existe, em regra, no âmbito do motivo e do objeto do ato. Excepcionalmente, pode existir na forma do ato; porém, nunca é possível encontrá-la na competência e na finalidade. Exemplo de discricionariedade no motivo: a lei valeu-se de um termo aberto (“ordem pública”, “interesse social”, “conveniência do serviço”) para definir o momento de atuação da administração. Por sua vez, há discricionariedade no objeto quando a lei prevê vários conteúdos ou efeitos decorrentes da prática do ato, cabendo à Administração escolher a mais apropriada ao caso concreto.  

Nesse contexto, recebe o nome de mérito administrativo “o poder conferido pela lei ao administrador para que ele, nos atos discricionários, decida sobre a oportunidade e conveniência de sua prática” (Alexandrino e Paulo, Direito Administrativo, 2006, p. 317).

 

IV – Controle judicial dos atos discricionários

 

             A possibilidade de controle judicial dos atos vinculados não deixa margem de dúvida, sendo plenamente cabível. Assim, a negativa de concessão de um ato a quem dele faça jus (comportamento omissivo) ou a concessão ilícita de um ato a quem não tenha preenchido os requisitos legais são hipóteses explícitas em que o Poder Judiciário poderá ser invocado a intervir  nas condutas administrativas.

 Da mesma forma, é intuitivo que os atos discricionários, quando discrepam dos parâmetros legais, violando ou ameaçando direitos, são passíveis de controle jurisdicional.

Na realidade, a controvérsia reside nos limites da apreciação judicial desses atos. 

Segundo o entendimento prevalente, nada obsta a que juízes e tribunais procedam a um controle no tocante à legalidade do ato discricionário, sobretudo, no que diz respeito à competência, à forma e à finalidade legalmente delimitadas.

A grande dúvida reside em saber se o mérito do ato, isto é, a margem de liberdade de escolha atribuída por lei ao administrador, pode ser objeto de análise judicial.

Nesse ponto, os doutrinadores são unânimes no sentido de que não podem os juízes, sob pena de agressão ao princípio da separação dos poderes, se imiscuir no âmago das escolhas e dos posicionamentos administrativos tomados dentro dos limites da lei. O que pode ser realizado pelos magistrados é um controle dos limites de atuação discricionária, com vistas a verificar se ela execedeu ou não as balizas normativas.  

Nesse contexto, são poderosos instrumentos de controle do uso da competência discricionária: a) o princípio da proporcionalidade; b) a teoria dos motivos determinantes; c) a teoria do desvio de poder.

Pela proporcionalidade, poder-se-á aferir se a opção tomada pelo administrador, no uso de uma competência discricionária, é instrumentalmente adequada para o fim almejado, bem como se existem conteúdos normativos menos gravosos para a consecução do fim por ele buscado (proibição do excesso).

 Há, portanto, a possibilidade de controle judicial no que diz respeito à adequação e à necessidade do ato. Assim, será inadequado o ato cujo conteúdo for incapaz de alcançar um dado objetivo; será desnecessário quando, embora possa alcançar um dado fim, ele o faz de maneira gravosa, a qual poderia ser substituída por outra menos excessiva.

Pela teoria dos motivos determinantes, a Administração ficará vinculada à veracidade dos motivos que tiver declarado na emissão do ato, sob pena de nulidade. Assim, se um administrador declara que exonerou servidor ocupante de cargo em comissão pelo fato de haver necessidade de contenção de despesas, o ato será nulo caso se verifique que uma nova pessoa foi nomeada, eis que inverídico o motivo antes apontado (contingenciamento de despesas).

Por fim, de acordo com a teoria do desvio de poder, se a administração, agindo com base no poder discricionário, procurar alcançar fim diverso daquele previsto em lei, o ato poderá ser invalidado. É o que ocorre quando se usa da remoção de servidor como instrumento de punição e intimidação. Nesse caso, houve um claro desvirtuamento da finalidade específica do instituto, o que implica na possibilidade de invalidação do ato.

 

IV – Conclusão

 

           Do exposto, verifica-se que os atos administrativos discricionários podem ser objeto de amplo controle judicial no tocante ao sujeito, à forma e à finalidade. Ademais, são poderosos instrumentos de fiscalização dos limites da atuação discricionária o princípio da proporcionalidade, a teoria dos motivos determinantes e a teoria do desvio de finalidade. Nesses casos, o objeto da análise judicial consiste na verificação do respeito aos limites legais da discricionariedade. Contudo, proíbe-se a análise do mérito administrativo, preservando-se a separação das funções estatais e a liberdade de agir das autoridades administrativas.

  

 Francisco Falconi

 


Dica de leitura de Processo Civil

14 de julho de 2008

           Muito boa a nova edição do livro “Código de Processo Civil Interpretado –  Artigo por artigo, parágrafo por parágrafo” (aquele amarelinho) do autor Antônio Costa da Costa Machado, doutor e professor da USP.

           A nova edição mantém a excelente qualidade das anteriores, com uma peculiaridade: apesar das radicais reformas que o CPC sofreu no âmbito da execução de títulos judiciais e extra-judiciais, o autor enfrenta as mudanças com a tradicional objetividade e profundidade que o caracteriza. Além disso, manteve os comentários a passagens modificadas ou revogadas do CPC, o que permite uma interessante compreensão evolutiva da lei, por meio da comparação entre o texto novo e o velho.

         Na condição de texto legal interpretado, a obra é altamente recomendável como fonte complementar de estudo. Serve basicamente para tirar dúvidas e fechar as lacunas que os manuais não abragem.

          Recomendo o CPC  interpretado de Costa Machado, inclusive, aos que se encontram estudando para concursos que exigem a letra pura da lei. Afinal, nada melhor do que entender aquelas passagens mais obscuras e técnicas da lei, sem precisar pura e simplesmente decorá-las.