1. Atualmente, os atos administrativos, mesmo que elaborados em contrariedade com a lei, não podem ser anulados a qualquer tempo. De fato, em razão do princípio da segurança jurídica, o decurso do tempo convalida as situações fáticas, suprimindo o poder estatal de exercer o autotutela em relação aos que agiram de boa-fé.
É certo que, durante muito tempo, não existiu lei estipulando prazo para Administração anular atos ilegais. Assim, entendia-se que o exercício da autotutela poderia ocorrer a qualquer tempo, o que acabava criando grandes injustiças na desconstituição de situações materializadas há mais de 10 ou 20 anos. Essa lacuna foi fechada pela Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito federal.
2. Além de reconhecer a segurança jurídica como um princípio administrativo (art. 2º, caput), a Lei n.º 9.784/1999 estabeleceu, em seu art. 54, § 1º, o prazo decadencial de 5 (cinco) anos para a Administração anular as situações antijurídicas que beneficiam administrados de boa-fé:“o direito da Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.
Após o advento da Lei n.º 9.784/1999, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o prazo decadencial quinquenal nela previsto somente começou a correr a partir da vigência desse diploma, a qual se deu em 01/02/1999. Por isso, apenas se o ato ilegal for praticado após esse marco temporal é que o início do prazo decadencial começa no momento de sua emissão. Nesse sentido, pode ser citado o seguinte precedente:
“1. Segundo o entendimento firmado pela Corte Especial, caso o ato acoimado de ilegalidade tenha sido praticado antes da promulgação da Lei n.º 9.784/99, a Administração tem o prazo de cincos anos para anulá-lo, a contar da vigência da aludida norma para anulá-lo; caso tenha sido praticado em momento posterior, o prazo qüinqüenal da Administração tem início a partir da sua prática, sob pena de decadência, nos termos do art. 54 da Lei n.º 9.784/99”.1
A toda evidência, esse entendimento mostra-se inadequado. Com efeito, ao considerar que o princípio da segurança jurídica necessita de lei para ser concretizado, o STJ eternizou o poder de autotutela administrativa em detrimento dos que agiram de boa-fé. Nesse ponto, convém lembrar que a segurança jurídica é fruto de norma constitucional. Assim, cabe ao intérprete dar-lhe força normativa e máxima efetividade. A base jurídica desse postulado é a própria noção de Estado de Direito. Como bem ressalta Gilmar Mendes, “o tema da segurança jurídica tem assento constitucional (princípio do Estado de Direito)”.2
3. No plano das relações entre INSS e seus segurados, igualmente não existia um prazo fixando limite à autotutela administrativa. Por isso, as disposições da Lei n.º 9.784/1999 tornaram-se aplicáveis também aos benefícios concedidos por essa autarquia.
Ocorre que, antes mesmo do decurso do prazo de 05 anos, o Governo se apressou e editou a MP n.º 138, de 19.11.2003, convertida na Lei n.º 10.839/2004, que acrescentou o art. 103-A à Lei n.º 8.213/1991, fixando o prazo decadencial de 10 anos para o INSS rever os seus atos.4 Por isso, o STJ, em decisão tomada no Recurso Especial repetitivo n.º 1114938/AL, estabeleceu que o prazo decenal para o INSS revisar seus benefícios somente começou a correr em 01/02/1999, o que cria total insegurança para milhares de idosos. De fato, praticamente, eternizou-se a autotutela administrativa no regime geral de previdência. Assim, um benefício com algum vício concedido em 01/01/1970 poderá ser revisto até 01/02/2009, o que mostra um total descaso com o princípio da segurança jurídica.
4. Observe-se que não estamos a defender as constantes fraudes de que é vítima a previdência. É evidente que o INSS deve ser implacável com servidores ou segurados que fazem maracutaias falsificando documentos ou incluindo dados falsos nos sistemas. Contudo, na maior parte dos casos, os benefícios previdenciários são concedidos ou majorados indevidamente sem que o segurado sequer tenha ciência desses vícios. Por isso, a proteção da boa-fé merece especial atenção, mediante a aplicação dos prazos decadenciais, mesmo que retroativamente em detrimento do Poder Público. Nada mais injusto e inadequado do que cancelar uma pensão por morte ou aposentadoria, muitos anos após sua concessão, sendo certo que, em regra, a medida recairá sobre pessoas idosas. O cancelamento de uma aposentadoria é, quase sempre, episódio traumático na vida do segurado e de sua família.
1 STJ, AgRg no REsp 669.213/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 10/06/2008, DJe 04/08/2008.
2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 489.