Duplo grau de jurisdição: precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos

30 de junho de 2013

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê, em seu Artigo 8º, um vasto rol de garantias judiciais.  No item II, alínea “h”, desse dispositivo convencional encontra-se previsto o princípio do duplo grau de jurisdição, nos seguintes termos:

“2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

 O exame de casos relacionados ao duplo grau de jurisdição não ocorre por acaso. A razão de ser é mostrar que as práticas judiciais e ensinamentos doutrinários majoritários do Brasil encontram-se na contramão do entendimento da Corte Interamericana.

 Em relação ao duplo grau de jurisdição, importantes precedentes foram produzidos pela Corte, destacando-se as sentenças proferidas nos seguintes casos: a) Herrara Ulloa versus Costa Rica; b) Mohamed versus Argentina.

 Herrara Ulloa versus Costa Rica (2004)

 Em 12 de novembro de 1999, o Tribunal Penal do Primeiro Circuito Judicial de São José (Costa Rica) condenou o jornalista Mauricio Herrera Ulloa pelo crime de difamação, em razão de artigos publicados no periódico “La Nación”, os quais teriam ofendido a honra do diplomata Félix Prezedborski, que era representante daquele país na Organização de Energia Atômica da Áustria. Os artigos supostamente ofensivos de Ulloa foram escritos com base em notícias divulgadas na Bélgica acerca de escândalo, envolvendo Prezedborski. Contudo, a justiça da Costa Rica ordenou Ulloa ao pagamento de indenização. Como efeito secundário, o nome do jornalista foi lançado no registro judicial de delinqüentes.

 O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, por sua vez, encaminhou demanda à Corte em janeiro de 2003, alegando que o Estado da Costa Rica, por meio da referida decisão judicial, violou o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, o qual prevê o direito à liberdade de pensamento e expressão, bem como o artigo 8º, que trata das garantias judiciais.

 Ao julgar a demanda em 2004, a Corte assentou que, de fato, a Costa Rica violou a liberdade e pensamento e expressão, a qual representa o direito de expressar o próprio pensamento e a liberdade de buscar, receber e difundir o pensamento, sobretudo, envolvendo fatos relacionados a funcionário no exercício da função pública. Ademais, entendeu-se que, como o julgamento fora realizado em instância única, violou-se o duplo grau de jurisdição. Nesse ponto, entendeu-se que é direito de todo condenado recorrer a um tribunal superior formado por juízes imparciais, em que seja possível a ampla revisão dos fundamentos fáticos e jurídicos que embasam a condenação.

 Ao final, a sentença da Corte impôs as seguintes disposições contra a Costa Rica: a) tornar sem efeito a sentença prolatada em 12 de novembro de 1999; b) adequar o ordenamento interno ao disposto no artigo 8.2.h da Convenção Americana (duplo grau de jurisdição); c) Pagar a Mauricio Herrera Ulloa, a título de dano moral, US$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos de América).

 Caso Mohamed versus Argentina(2012)

 Em razão de atropelamento ocorrido em março de 1992, a promotoria argentina (Fiscal Nacional de Primera Instancia) ofereceu denúncia em face do motorista profissional Oscar Alberto Mohamed, dando-o como incurso nas penas do crime de homicídio culposo. Ao final, o juízo de primeiro grau, em 30 de agosto de 1994, absolveu o réu. Ocorre que o caso foi levado a segunda instância (Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional), a qual decidiu reformar a sentença, condenando o réu. Em face dessa decisão somente seria possível um recurso de natureza extraordinária (recurso extraodinario federal), cuja natureza não permite que as partes suscitem ao tribunal superior a nova valoração das provas e das questões de fato. O réu ainda recorreu extraordinariamente; porém, o recurso foi considerado inadmissível.

O caso foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, em 13 de abril de 2011, demandou a República Argentina por violação ao artigo 8.2.h do Pacto de São José da Costa Rica. Aduziu-se que o direito processo penal argentino não permitiu que a condenação em segundo grau de jurisdição fosse revista, de forma ampla e aprofundada, pelo tribunal superior.

Ao final, o argumento de violação ao artigo 8.2.h foi integralmente acolhido.  Entendeu-se que o art. 8.2.h refere-se a um recurso ordinário acessível e eficaz, que deve ser garantido antes que a sentença penal condenatória transite em julgado. Impõe-se à República Argentina a obrigação de adotar as medidas necessárias para garantir a Oscar Alberto Mohamed o direito de recorrer da condenação emitida pela Sala Primera de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional de 22 de fevereiro de 1995, em conformidade com os parâmetros convencionais do Articulo 8.2.h da Convenção Americana.


Curso sobre Controle de Convencionalidade e Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.

29 de junho de 2013

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Entre os dias 25 a 29 de junho de 2013, foi realizado em João Pessoa, Paraíba, curso sobre Controle de Convencionalidade e Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH. O evento decorreu de parceria entre o Ministério da Justiça e a Corte Interamericana, com apoio de órgãos públicos e entidades ligadas à proteção dos direitos humanos.

A finalidade precípua do curso foi divulgar, no Brasil, a jurisprudência da Corte Interamericana, mediante palestras de juristas nacionais e internacionais especializados no assunto, com vistas à capacitação sobre o Sistema Interamericano de Direito Humanos.

Temas como garantias processuais, proteção judicial, reparações, povos indígenas, migração e refúgio, justiça de transição, entre outros, foram tratados com profundidade para uma platéia formada por juízes, advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público, professores e estudantes.

Para a maioria dos brasileiros que participaram do evento, ficou evidente que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui riquíssima jurisprudência, formada a partir de casos paradigmáticos dos mais diversos países do continente.

Desafortunadamente, esses precedentes são completamente desconhecidos para a maioria dos operadores jurídicos pátrios, o que se confirma pela escassez de decisões e petições que citem dispositivos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e sentenças da Corte. Em terras tupiniquins, as decisões do Tribunal Constitucional alemão ou da Suprema Corte norte-americana são mais populares que os arestos da CIDH, o que demonstra uma tendência, enraizada na cultura jurídica pátria, de esquecimento do rico universo jurídico da América Latina.

A estrutura do curso foi a mesma utilizada para a capacitação dos Defensores Públicos Interamericanos. Desde 2009, o Regulamento da CIDH permite, após a admissão da demanda, que as supostas vítimas ou representantes credenciados apresentem petições, argumentos e provas durante todo o processo. Sendo pessoas socialmente vulneráveis, as supostas vítimas poderão valer-se do corpo de 15 Defensores Públicos Interamericanos, disponibilizados em razão de convênio celebrado entre a Corte Interamericana de Direitos e a Associação Interamericana de Direitos Humanos – AIDEF.

Na próxima postagem, serão apresentados alguns casos levados à CIDH e discutidos no curso de que trata este post. Desde já, fica o incentivo para que todos passem a ter um novo olhar em relação à jurisprudência da Corte Interamericana.