1. O problema
No Direito Processual Civil brasileiro, a exceção de domínio nos procedimentos possessórios é um tema que, há décadas, desperta intensa controvérsia. Imaginemos que uma pessoa, alegado ser possuidora, interponha demanda de reintegração de posse e o réu, na contestação, defenda-se afirmando que esbulhou o bem por ser dono da coisa. É possível alegar o domínio em demanda possessória? Tal defesa não esvaziaria a razão de ser desses procedimentos, qual seja, a proteção da posse pela posse?
2. A exceção de domínio antes do Código Civil de 2002
Ao tratar da defesa da posse, o Código Civil de 1916 disciplinou a exceção de domínio em seu art. 505, nestes termos: “Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”
O art. 505 do Código Civil era confunso e contraditório. Com efeito, a parte incial do dispositivo ordenava que fosse ignorada eventual exceção de domínio; contudo, a parte final do dispositivo, determinava a improcedência do pedido se o possuidor não tivesse o domínio. Ao interpretar esse dispositivo, o Supremo Tribunal Federal tentou harmonizá-lo, fixando os seguintes entendimentos :
a) se a posse é postulada pelo autor com base no domínio, é lícito ao réu apresentar defesa baseada também no domínio. Com base nessa premissa, o Plenário do STF, em 03 de dezembro de 1969, editou a súmula 487, segundo a qual “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada.” A rigor, nesse caso, não há uma demanda possessória, mas uma demanda petitória, pois, desde logo, a posse é postulada com base na propriedade.
b) sendo a posse duvidosa, é licito apreciar o caso sob a ótica do domínio. Nesse sentido, veja-se o Recurso Extraordinário n. 63.080, relatado pelo Ministro Aliomar Baleeiro: “Decidindo acerca da aparente antinomia dos dois períodos do art. 505, do Código Civil, a jurisprudência do STF já assentou que a exceção de domínio e aceitável quando os litigantes disputam a posse a título de proprietários ou quando tal posse é duvidosa em relação a qualquer deles.” (RE 63080, Segunda Turma, julgado em 21/11/1967, DJ 22-03-1968).
Com a Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, foi instituído o novo Código de Processo Civil. Em seu art.923, a nova lei tratou da exceção de domínio sem trazer grandes novidades. Com efeito, permitia-se expressamente o juiz julgar em a demanda em prol daquele “a quem evidentemente pertencer o domínio”. Assim, por ser uma lei posterior, para parte da doutrina sustentou que esse do dispositivo processual revogou tacitamente o art. 505 do Código Civil de 1916.
Pouco tempo após a vigência do atual CPC, surge a Lei n. 6.820, de 16 de setembro de 1980, que promoveu uma alteração no art. 923 do CPC. Como resultado dessa lei, foi abolida a possibilidade de o juiz julgar em a demanda em prol daquele “a quem evidentemente pertencer o domínio”. Portanto, o entendimento que deveria ter prevalecido era o da extinção da exceção de domínio nos procedimentos possessórios. Contudo, mesmo após essa lei, eram comuns julgados admitindo o manejo da exceção de domínio com base no art. 505 do Código Civil de 1916.
3. O fim da exceção de domínio nos procedimentos possessórios
Com o advento do novo Código Civil, a exceção de domínio, em procedimentos possessórios, deixou de existir. Com efeito, o dispositivo que trata do tema tem a seguinte redação: “não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa” (art. 1.210, § 2º).”
Portanto, após o Código Civil de 2002, não mais há a possibilidade de se alegar o domínio para como defesa em face de ação possessória. Segundo o processualista Costa Machado, “ao assim dispor, o novo Código Civil retirou, por completo, a relevância da exceção de domínio, dando ênfase total à situação possessória” (Código de Processo Civil Interpretado – Artigo por artigo, 7ª ed., 2008, p. 1.291).
Por isso, na I Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF/STJ foi aprovado o enunciado 79, dotado do seguinte teor: “A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”.
Na realidade, só é lícita a exceção de domínio, quando a o autor da ação, desde logo, disputa a posse com base na propriedade, situação em que, a rigor não há uma demanda possessória, mas uma ação petitória. Se apenas o réu, na possessória, afirma ser proprietário, não deve o juiz conhecer dessa questão.
Por isso, “tendo em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no ius possessionis deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso” (Enunciado 78 da I Jornada de Direito Civil).