O aniversário de dez anos do Código Civil de 2002

11 de janeiro de 2012

Há exatos dez anos, as páginas do Diário Oficial da União continham a publicação da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil. Após o decurso de vacatio legis de um ano, o novo Código Civil entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003.

O atual Código Civil veio à lume para substituir primeiro Código Civil brasileiro (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), cujo trabalho de elaboração coube ao jurista cearense e professor da faculdade de Direito do Recife Clóvis Beviláqua. Projetado para uma sociedade rural e partriarcalista, o Código de 1916 tinha um espírito fortemente individualista, baseando-se nos princípios liberais clássicos da propriedade privada quase que absoluta e na autonomia privada irrestrita. Na seara do Direito de Família, a legislação colocava o homem em posição de preponderância em relação à mulher, consagrando a família constituído pelo casamento como a única a merecer proteção do Estado.

Evidentemente, o Código de Beviláqua não tardou em envelhecer, diante de fenômenos como a urbanização, a emanciapação da mulher e a sociedade de massas. Considerando seu caráter caduco, o Governo militar, já em 1969, formou comissão para elaborar um projeto de Código Civil, cabendo ao jurista Miguel Reale a presidência dessa empreitada, que contou com outros nomes de peso, a exemplo do Ministro aposentado do STF Moreira Alves. Em 1973, essa comissão publicou o Anteprojeto de Código Civil, fortemente influenciado pelo Direito Privado iltaliano. Somente em 1975, o Projeto de Lei n.º 634/1975 foi para o Congresso Nacional, passando por uma longa e infrutífera tramitação.

Enquanto o projeto dormia nas gavetas do Congresso, o velho Código permaneceu em vigor e o legislador começou a criar microssistemas protetivos para a mulher, a criança e adolescente, para o consumidor. Surge a Constituição Federal de 1988, revitalizado o Direito Privado e o projeto de novo Código Civil continuara andando a passos de formiga no parlamento. Eis que, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, o Congresso Nacional retoma o seu exame e o aprova em 2002. Nessa nova iniciativa de aprovação do Código, muitas emendas foram feitas ao velho projeto a fim de adequá-lo ao texto constitucional de 1988.

 Segundo Miguel Reale, “a nova Lei Civil preservou numerosas contribuições valiosas da codificação anterior, só substituindo as disposições que não mais correspondiam aos valores ético-jurídicos da nossa época, operando a necessária passagem de um ordenamento individualista e formalista para outro de cunho socializante e mais aberto à recepção das conquistas da ciência e da jurisprudência”. (REALE, Miguel. O novo Código Civil e seus críticos).

É certo que muitas críticas podem ser feitas ao Código de 2002. Tão logo promulgado vários juristas taxaram-no de “desatualizado”. Em todo caso, o grande legado da nova legislação foi apresentar cláusulas gerais como a boa-fé e a função social dos contratos, as quais constituem fontes inesgotáveis de normas essenciais para a vitalidade do sistema jurídico. Da mesma forma, o Direito de Família passou a ter um perfil menos patrimonialista, calcando-se na dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o novo Código promoveu uma renovação doutrinária e jurisprudencial, podendo ser destacada a grande quantidade de obras e estudos publicados nos últimos dez anos acerca das inovações da nova lei.


Procedimento possessório e Código Civil: o fim da exceção de domínio

30 de julho de 2011

1. O problema

 No Direito Processual Civil brasileiro, a exceção de domínio nos procedimentos possessórios é um tema que, há décadas, desperta intensa controvérsia. Imaginemos que uma pessoa, alegado ser possuidora, interponha demanda de reintegração de posse e o réu, na contestação, defenda-se afirmando que esbulhou o bem por ser dono da coisa. É possível alegar o domínio em demanda possessória? Tal defesa não esvaziaria a razão de ser desses procedimentos, qual seja, a proteção da posse pela posse?

 2. A exceção de domínio antes do Código Civil de 2002

 Ao tratar  da defesa da posse, o Código Civil  de 1916 disciplinou a exceção de domínio em seu art. 505, nestes termos:  “Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”

O  art. 505 do Código Civil era confunso e contraditório. Com efeito,  a parte incial do dispositivo ordenava que fosse ignorada eventual exceção de domínio; contudo, a parte final do dispositivo, determinava a improcedência do pedido se o possuidor não tivesse o domínio.  Ao interpretar esse dispositivo, o Supremo Tribunal Federal tentou harmonizá-lo, fixando os seguintes entendimentos :

a) se a posse é postulada pelo autor com base no domínio, é lícito ao réu apresentar defesa baseada também no domínio. Com base nessa premissa, o Plenário do STF, em 03 de dezembro de 1969, editou a súmula 487, segundo a qual “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada.” A rigor, nesse caso, não há uma demanda possessória, mas uma demanda petitória, pois, desde logo, a posse é postulada com base na propriedade.

 b) sendo a posse duvidosa, é licito apreciar o caso sob a ótica do domínio. Nesse sentido, veja-se o Recurso Extraordinário n. 63.080, relatado pelo Ministro Aliomar Baleeiro: “Decidindo acerca da aparente antinomia dos dois períodos do art. 505, do Código Civil, a jurisprudência do STF já assentou que a exceção de domínio e aceitável quando os litigantes disputam a posse a título de proprietários ou quando tal posse é duvidosa em relação a qualquer deles.” (RE 63080, Segunda Turma, julgado em 21/11/1967, DJ 22-03-1968).

Com a Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, foi instituído o novo Código de Processo Civil. Em seu art.923, a nova lei tratou da exceção de domínio sem trazer grandes novidades. Com efeito, permitia-se expressamente o juiz julgar em a demanda em prol daquele “a quem evidentemente pertencer o domínio”. Assim, por ser uma lei posterior, para parte da doutrina sustentou que esse do dispositivo processual revogou tacitamente o art. 505 do Código Civil de 1916.

Pouco tempo após a vigência do atual CPC, surge a Lei n. 6.820, de 16 de setembro de 1980, que promoveu uma alteração no art. 923 do CPC. Como resultado dessa lei, foi abolida a possibilidade de o juiz julgar em a demanda em prol daquele “a quem evidentemente pertencer o domínio”. Portanto, o entendimento que deveria ter prevalecido era o da extinção da exceção de domínio nos procedimentos possessórios. Contudo, mesmo após essa lei, eram comuns julgados admitindo o manejo da exceção de domínio com base no art. 505 do Código Civil de 1916.

3. O fim da exceção de domínio nos procedimentos possessórios

Com o advento do novo Código Civil, a exceção de domínio, em procedimentos possessórios, deixou de existir. Com efeito, o dispositivo que trata do tema tem a seguinte redação: “não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa” (art. 1.210, § 2º).”

Portanto, após o Código Civil de 2002, não mais há a possibilidade de se alegar o domínio para como defesa em face de ação possessória. Segundo o processualista Costa Machado, “ao assim dispor, o novo Código Civil retirou, por completo, a relevância da exceção de domínio, dando ênfase total à situação possessória” (Código de Processo Civil Interpretado – Artigo por artigo, 7ª ed., 2008, p. 1.291).

Por isso, na I Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF/STJ foi  aprovado o enunciado 79, dotado do seguinte teor: “A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”.

Na realidade, só é lícita a exceção de domínio, quando a o autor da ação, desde logo, disputa a posse com base na propriedade, situação em que, a rigor não há uma demanda possessória, mas uma ação petitória. Se apenas o réu, na possessória, afirma ser proprietário, não deve o juiz conhecer dessa questão.

Por isso, “tendo em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no ius possessionis  deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso” (Enunciado 78 da I Jornada de Direito Civil).


O princípio da boa-fé objetiva e seus desdobramentos: “venire contra factum proprio”, “supressio”, “surrectio” e “tu quoque”

17 de julho de 2011

O princípio da boa-fé objetiva tem raiz no Direito alemão, na famosa expressão treu und glauben. Literalmente, essas expressões podem ser traduzidas ao português como “lealdade” e “confiança”. Na linguagem jurídica, aquelas palavras foram incorporadas ao Direito brasileiro com a denominação “boa-fé objetiva”, positivada no art. 422 do Código Civil.

Em termos gerais, a boa-fé objetiva é uma cláusula geral que impõe o dever de as partes manterem um padrão de comportamento marcado pela lealdade, honestidade, cooperação, de modo que uma não se lese a legítima confiança depositada pela outra. O princípio da boa-fé objetiva possui diversos desdobramentos ou funções reativas: a) venire contra factum proprio; b) supressio; c) surrectio; d) tu quoque.

O desdobramento matriz da boa-fé objetiva é a regra proibitiva, de origens medievais, denominada venire contra factum proprio. Essa expressão, literalmente, pode ser traduzida como a proibição de “vir contra fato que é próprio”. Tecnicamente, em nome da segurança e da confiança, veda-se que um agente, em momentos diferentes, adote comportamentos contraditórios entre si, prejudicando outrem.

O art. 330 do Código Civil é exemplo de dispositivo legal do quel se extrai norma derivada do venire contra factum proprio. De acordo com essa artigo, o pagamento reiteradamente feito em outro lugar faz presumir renúncia tácita do credor relativamente ao previsto no contrato.  Assim, se o contrato previu que Campina Grande seria o local do pagamento, mas, durante certo período, o credor aceitou que o pagamento fosse feito em João Pessoa, ele não poderá alegar que o devedor cometeu ato ilícito. Haverá o supressio do direito de o credor receber em Campina Grande e o surrectio do direito do devedor pagar em João Pessoa.

Nesse contexto, fica claro que o supressio e o surrectio são faces da mesma moeda ou derivações do venire contra factum proprio. O supressio se consuma quando a parte, ao deixar de exercer um direito, por determinado espaço de tempo, vem a perdê-lo devido à consolidação de situação favorável à outra parte, beneficiada pela surrectio. Quando uma parte perde um direito, sofre supressio; consequentemente, outra parte ganha algo, ocorrendo o surrectio.

Como desdobramento da boa-fé objetiva, podemos também citar o tu quoque. Trata-se de uma partícula extraída da célebre frase dita Júlio César ao ser apunhalado, covardemente e de surpresa, por seu filho: tu quoque Brutus filie mi (“até tu Brutos, filho meu”). Assim, o tu quoque, quando aplicado na relação privada, pretende evitar a quebra da confiança pelo comportamento marcado pela surpresa ou ineditismo.

A exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) é exemplo tu quoque. Segundo o art. 476, nos contratos bilaterais, antes de cumprida a sua obrigação, uma parte não pode exigir o implemento da obrigação do outro. Imagine-se um contrato de empreitada, segundo o qual uma pessoa se obriga a entregar materiais para que outrem realize certa obra. Nesse caso, o contratante interpõe uma ação, exigindo que o contrato entregue a obra, sem ao menos ter entregado os materiais. Fica clara a possibilidade de a outra parte apresentar contestação, contendo a exceção do contrato não cumprido. Quando o dono da obra entrega os materiais defeituosos ou insuficientes, a defesa será a exceptio rite adimpleti contractus.

Todos os desdobramentos da boa-fé objetiva são instrumentos essenciais para a resolução das mais variadas questões jurídicas. Compreendê-los é a ordem do dia no Direito Privado.


A função social do contrato

4 de abril de 2011

1. Diferença: função social e boa-fé objetiva

A teoria contratual contemporânea tem como protagonistas os seguintes princípios sociais: a) boa-fé objetiva; b) função social; c) equivalência material. Evidentemente, os princípios clássicos decorrentes do liberalismo não foram derrogados. Contudo, é inegável que a autonomia privada, a intangibilidade e a relatividade subjetiva dos contratos sofreramuma verdadeira releitura.

A boa-fé objetiva (art. 422, CC) é horizontal e endógena (diz respeito à relação entre as partes. Ao celebrar um contrato, as partes devem manter um padrão de comportamento marcado pela lealdade,  honestidade e cooperação, de modo que um não lese a legítima confiança depositada pelo outro. Esse modelo de conduta é a boa-fé objetiva. Subjetivamente, um contratante  muitas vezes não tem a intenção de agir de má-fé, lesando os legítimos interesses do outro; contudo, se concretamente seu comportamento violar esse padrão de ética e lealdade, o princípio da boa-fé objetiva poderá ser invocado pela parte prejudicada.

A função social do contrato é vertical e exógena (art. 421, CC). Função significa “utilidade, uso ou serventia”. Social é aquilo que interessa à sociedade. Logo, o aspecto gramatical revela em grande parte o conteúdo do princípio: os contratos devem ter conteúdo em consonância com os interesses sociais elementares.

Sob uma ótica civil-constitucional, a função social do contrato é  uma derivação dos princípios que norteiam a ordem econômica, especialmente a função social da propriedade. Diz a doutrina: “A propriedade é o aspecto estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular”. (GAMA, Guilherme Calmon de Nogueira da. Função Social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 79)

2. Manifestações da função social do contrato

Sistematicamente,  três são as formas de manifestação do princípio da função social dos contratos: a) proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana; b) tutela externa do crédito; c) proibição da figura do terceiro ofensor. Vejamos:

2.1. Proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana

A função social permite que o Poder Público intervenha em contrato com a finalidade de invalidar cláusulas que ofendam interesses difusos e coletivos, tais como o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, a defesa do consumidor ou a livre concorrência. A função social também permite que sejam anulados ou mesmo obstados contratos que violem a dignidade da pessoa humana. Ex.: contratos de cessão de imagens lesivos à imagem de minorias. Nesse caso, o contratante é reduzido a mero objeto de divertimento alheio, algo inconcebível no contexto da atual Constituição. Nesse sentido, o enunciado 23 das jornadas de Direito Civil:

23 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.

2.2. Tutela externa do crédito

É possível que a função social do contrato seja cumprida entre as partes e não ofenda interesses coletivos. Contudo, mesmo nessa hipótese, o princípio em tela não será integralmente cumprido se o contrato violar interesse de terceiro ofendido.  Esse aspecto da função social liga-se à tutela externa do crédito.

Normalmente a relação de crédito é interna; contudo, em certas situações, o contrato produz efeitos em relação a terceiros, ultrapassando os limites subjetivos originais. É o caso do contrato de seguro, no qual seu conteúdo vai além da relação com o contratante. Por isso, é possível ao terceiro demandar diretamente a seguradora. No art. 788 do CC (seguro obrigatório), já expressamente permitido demandar-se diretamente a empresa de seguro.  Sobre a tutela externa do crédito, veja-se o seguinte enunciado das jornadas de Direito Civil:

21 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

Um outro exemplo de aplicação da tutela externa do crédito envolve o sistema financeiro da habitação. Em muitos casos, o consumidor celebra contrato de promessa de compra e venda com uma construtora, tornado-se promitente comprador. Nesse caso, o promitente é mero possuidor, eis que somente adquirirá a propriedade quando quitar todas as prestações.

Se durante esse contrato de promessa de compra e venda, a construtora celebrar mútuo com instituição financeira, dando aquele bem imóvel como garantia, a hipoteca respectiva não terá eficácia perante o promitente comprador. Caso a construtora não pague as obrigações, o consumidor não poderá ser prejudicado pelo gravame. Mais uma vez, trata-se de reflexo da função social do contrato, enquanto princípio que protege terceiros em face de contratos alheios. A seguinte súmula do STJ concretiza esse princípio:

Súmula nº 308 – A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

2.3. A figura do terceiro ofensor: o caso Zeca Pagodinho versus Nova Schin

O contrato é um ato de intercâmbio de bens e de serviços. É a vestimenta jurídica da circulação de bens e de serviços. Muito antes de uma função social, há uma função econômica nas relações obrigacionais.

O terceiro ofensor pratica a chamada interferência ilícita, induzindo maliciosamente uma das partes a contratar com ele, provocando a morte precipitada do contrato anterior. Trata-se conduta perniciosa, pois quebra a confiança que deve existir no âmbito negocial.

O mundo publicitário brasileiro nos fornece um caso clássico.

O cantor Zeca Pagodinho e a empresa Nova Schin possuíam um contrato de cessão de imagem. A AMBEV interferiu nessa relação assumindo a condição de terceira ofensora, pois contratou Zeca, o qual ainda fez pilheria da antiga empresa numa campanha publicitária da Brahma. Nesse caso, há várias conseqüências jurídicas decorrentes do princípio da função social dos contratos: a) a nova Schin pode processar  Zeca Pagodinho, pois este, no publicidade da AMBEV, ofendeu a honra objetiva da empresa ; b) a nova Schin também poderá processar a AMBEV, pois a função social do contrato repele a figura  do terceiro ofensor.


Lei nº 12.344/10 – Separação absoluta de bens passa a ser obrigatória para maiores de 70 anos

13 de dezembro de 2010

Em sua redação original, o art. 1641, II, do Código Civil determinava que as pessoas maiores de 60 anos somente poderiam se casar pelo regime da separação de bens. Nesse regime patrimonial, os bens são incomunicáveis, o que significa dizer que um cônjuge não terá direito àquilo que o outro possuía antes do enlace ou que passou a ter durante a relação matrimonial.

É fácil perceber que a finalidade da norma era proteger o patrimônio do idoso e a expectativa de direito dos futuros herdeiros, evitando que uma aventura amorosa a pusesse em risco. Em outras palavras, procurava-se conter o famoso “golpe do baú”.

Apesar dessa nobre finalidade, o citado dispositivo foi profundamente criticado pela doutrina, que o considerava inconstitucional por ferir a dignidade humana. O jurista mineiro César Fiúza assim se manifestou sobre o tema: “A constitucionalidade do regime de separação legal imposta aos maiores de 60 anos vem sendo discutida, desde a entrada em vigor do Código Civil. De fato, não parece de bom senso a exigência, que representa uma capitis diminutio aos maiores de 60 anos. A norma os infantiliza, os idiotiza, o que não condiz com a realidade. Hoje, uma pessoa de 60 anos é ainda um jovem, pelo menos para efeito do casamento.” (Direito Civil: curso completo, 14 ed., 2010, p. 981).

Por força da Lei nº 12.344, de 09 de dezembro de 2010 (DOU 10/12/2010), a idade prevista no art. 1641, II, do Código Civil foi aumentada para 70 anos. Assim, o regime da separação somente é uma imposição legal, caso um dos nubentes seja um septuagenário. Agora, um homem de 69 anos de idade pode casar, desde que o pacto antenupcial assim o preveja, com uma jovem de 21 anos pelo regime da comunhão universal de bens.

Nesse contexto, é de se indagar a situação de quem foi obrigado a se casar pela separação absoluta por conta da redação original do art. 1641, II, do CC e, hoje, possui menos de 70 anos. Parece-nos que essas pessoas poderão pleitear a alteração no regime de bens todos. De fato, nessa matéria, prevalece o princípio da mutabilidade justificada (art. 1639, § 2º, do CC). Assim, desde que exista pedido motivado de ambos os cônjuges, o juiz pode determinar a alteração do regime de bens, ressalvados os direitos de terceiros. Contudo, trata-se de tema polêmico, que deverá ser objeto de estudos mais intensos.


Separação judicial e divórcio após a EC nº 66, de 13 de julho de 2010

19 de julho de 2010

No dia 14 de julho de 2010, foi publicada uma Emenda Constitucional que operou uma revolução no Direito de Família brasileiro. Estamos falando da EC nº 66/2010, a qual procurou facilitar o acesso ao divórcio no Brasil, “suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.”

Para se entender o significado dessa alteração do texto constitucional, façamos uma breve diferenciação entre os institutos da separação e do divórcio.

Conforme ensinam os civilistas, o casamento é constituído pela sociedade conjugal e pelo vínculo conjugal. Com a separação judicial, ocorre o  fim da sociedade conjugal, cessando  os deveres de coabitação, fidelidade recíproca e o regime de bens. Contudo, a separação não acarreta o fim do vínculo matrimonial. Assim, pessoas separadas não poderiam se casar, embora a lei admitisse a possibilidade de terem união estável com terceiros (art. 1.723, § 1º, CC). Por outro lado, nada impedia que pessoas separadas  após reconciliação, voltassem a viver juntas, fazendo ressurgir a sociedade entre elas. Por sua vez, o divórcio é algo mais radical, pois significa a dissolução do vínculo matrimonial. Assim,  pessoas divorciadas  podem se casar novamente ou ter união estável. Ademais, uma vez divorciados, ex-marido e ex-esposa somente podem reconstituir a sociedade conjugal e o vínculo após novo casamento.

Antes da EC nº 66/2010, a separação judicial ou de fato era uma etapa a ser cumprida para se pleitear o divórcio. Esse obstáculo ao fim do vínculo matrimonial era imposto pelo art. 226, § 6º, da CF, segundo o qual: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.”

Após essa emenda constitucional, o art. 226, § 6º, da CF passou a ter uma redação mais simples: “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” Na realidade, por meio dessa simplificação, duas modificações de impacto foram feitas: a) o fim do instituto da separação judicial; b) a extinção “do prazo mínimo para a dissolução do vínculo matrimonial (eis que não há mais referência à separação de fato do casal há mais de dois anos).” (STOLZE, Pablo. A Nova Emenda do Divórcio: Primeiras Reflexões).

Portanto, a emenda permite que homem e mulher se casem hoje e, no outro dia, façam, se assim quiserem, o divórcio. Trata-se de algo relativamente fácil, pois a Lei n. 11.441/2007 regulou o divórcio administrativo, permitindo aos casais, sem filhos menores ou incapazes, a possibilidade de, consensualmente, lavrar escritura pública de divórcio, em qualquer Tabelionato de Notas do Brasil.

Antes da emenda da EC nº 66/2010, a consumação do divórcio era algo que a ordem jurídica evitava, imponde grandes dificuldades e entraves burocráticos. Vale dizer: para que ocorresse o divórcio era necessário que os cônjuges estivessem separados por algum tempo (um ano se a separação fosse judicial e dois se fosse de fato).

Acreditamos que essa emenda é positiva. Segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, “Além de reduzir a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos, a medida acarretará economia de recursos técnicos e financeiros para o Judiciário e para os indivíduos que pretendem se divorciar, uma vez que não serão necessários os dois processos, separação judical e divórcio”.

Para o professor da Rede LFG e magistrado na Bahia Pablo Stolze, “O que se quis, em verdade, por meio da aprovação da recente Emenda do Divórcio, é permitir a obtenção menos burocrática da dissolução do casamento, facultando, assim, que outros arranjos familiares fossem formados, na perspectiva da felicidade de cada um. Pois sem amor e felicidade não há porque se manter um casamento.”

A EC nº 66/2010 prova que, às vezes, uma simples alteração legislativa é suficiente para pôr abaixo correntes jurisprudências consolidadas, sólidas lições doutrinárias e livros jurídicos inteiros. Quando mudanças desse jaez se processam, doutrinadores terão que reescrever capítulos de suas obras; e igual trabalho terão os atualizadores, que passarão à condição de verdadeiros autores, reformulando radicalmente as obras de juristas finados.