Defecar em processo configura crime de inutilização de documento público

31 de maio de 2011

Um caso extremamente curioso (e mal cheiroso) ocorreu na 5ª Vara Criminal de Jaú, em São Paulo. Um homem, como forma de protesto, inutilizou um processo, defecando sobre os respectivos autos em pleno cartório, perante advogados, servidores e o público em geral. A conduta grosseira e anti-civilizada rendeu-lhe a condenação pelo crime de inutilização de documento público (art. 337 do Código Penal), confirmada pelo TJSP.

 Na espécie, o autor do fato havia sido processado pelo crime de guarda de arma de fogo no interior residência sem autorização legal, conseguindo ser beneficiado pela suspensão condicional do processo. Como condição de liberdade, o interessado deveria comparecer mensalmente ao cartório da vara para assinar um registro de ponto. Após cumprir a condicionante com pontualidade e disciplina, o interessado, na última vez que fora à vara cometeu o inusitado ato: como protesto, defecou nos autos do processo.

 O site consultor jurídico (conjur) narra os fatos com riqueza de detalhes: “(o criminoso) pediu a um funcionário os autos do controle de frequência, para assiná-los, como sempre fazia. Foi então que, intempestivamente, ordenou que todos se afastassem. Abaixou-se em frente ao balcão de atendimento. Desceu as suas calças e defecou sobre referidos autos, inutilizando-os parcialmente. Não satisfeito, passou a exibir o feito a todos os presentes, enquanto dizia que iria arremessar sua obra contra o juiz e o promotor de Justiça que atuaram no processo. O gran finale foi impedido pelos funcionários do fórum. O réu foi autuado em flagrante delito.”

 Por considerar que o agente era semi-imputável, a justiça paulista aplicou-lhe medida de segurança, que foi confirmada pelo respectivo tribunal em acórdão assim resumido:

 “Apelação criminal. Condenação por crime de inutilização de documento público. Defecou sobre os autos do processo, protestando contra a decisão dele constante. Objetiva a absolvição diante da ausência de dolo. Razão não lhe assiste. Consoante as provas coligidas, perícia e depoimentos testemunhais, bem sabia o réu das consequências de seu inusitado protesto. Dolo evidente. Sentença escorreita, proferida com sobriedade e equilíbrio na aplicação da sanção adequada – medida de segurança. Nada mais pode almejar. Provimento negado.” (TJSP, Apelação nº 0010102-10.2007.8.26.0302, 04 de abril de 2011)


Comentários ao crime de injúria qualificada pelo preconceito

12 de maio de 2011

Em passagem de inigualável beleza, o Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 assenta a liberdade e a igualdade como valores supremos de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Por sua vez, o corpo normativo da lei fundamental estabelece que constituem objetivos da Republica Federativa do Brasil a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária” e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso I e IV, da CF). Portanto, o preconceito e a intolerância são condutas que afrontam todo o corpo constitucional.

Originariamente, o Código Penal não previa norma especial vedando comportamentos preconceituosos. Assim, quem praticasse a injúria ofendendo a honra subjetiva de outrem por meio expressões racistas respondia pela forma simples do crime (art. 140, caput, do CP).

 É certo que, pouco depois da promulgação da Constituição de 1988, foi editada a Lei nº 7.716/89, que descreveu e puniu os crimes de racismo. Os tipos penais desse diploma descrevem comportamentos segregacionistas, a exemplo da recusa ou impedimento de acesso a um estabelecimento comercial (art. 4º). Contudo, essa tutela penal contra o preconceito mostrava-se incompleta. No Brasil, as condutas racistas calcadas na segregação formal e institucionalizada não são disseminadas, a exemplo do ocorreu nos Estados Unidos da América. Entre nós, são muito mais freqüentes formas de “discriminação velada, trazida por ofensas e comentários desairosos a pessoas e instituições”.[1] Muitas vezes, tais comportamentos possuem a mesma eficácia opressiva das posturas formais e rígidas de segregação.

Assim, com a finalidade de completar a tutela penal contra o preconceito e a intolerância, foi editada a Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997 inseriu o § 3º no art. 140 do CP passando a reprimir a injúria cometida mediante a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem. A partir de então, chamar uma pessoa negra de “macaco”, um judeu de “avarento” ou um nordestino “matuto”, com a finalidade de agredir sua dignidade ou decoro, passou a ser crime de injúria qualificada, sujeitando o agente à pena de reclusão de um a três anos e multa.

 Posteriormente, a Lei nº 10.741, de 1ª de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso) enriqueceu o rol do art. 140, § 3º, do Código Penal ao acrescentar a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência como núcleos da injúria qualificada pelo preconceito. Assim, por força dessa inovação, passou a ser qualificada a injúria contra os maiores de 60 anos, consistente no uso de características decorrentes da senilidade. Ex.: chamar uma pessoa de 60 anos de “velho babão” com a intenção de humilhá-la. Da mesma forma, é qualificada pelo preconceito a injúria consistente em ofensa contra deficiente físico, com base nas suas necessidades especiais.

Apesar de terem a finalidade de reprimir o preconceito, a injúria qualificada do art. 140, § 3º, do CP não se confunde com o racismo. Na injúria, o agente atribui qualidade negativa fundada em “elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. Trata-se de crime afiançável e prescritível. No racismo, o agente segrega a vítima, privando-a do convívio digno, sendo tal delito insuscetível de fiança e imprescritível.

Por fim, em decorrência da Lei nº 12.033/2009, a injúria qualificada pelo preconceito passou a ser crime punido mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Os crimes de racismo previstos na Lei nº 7.716/89 são processados mediante ação penal pública incondicionada. Eis o quadro sinótico das diferenças entre o crime de racismo e de injúria qualificada pelo preconceito:

Injúria qualificada pelo preconceito Racismo (Lei nº 7.716/89)
O agente atribui qualidade negativa. O agente segrega a vítima, privando-a do convívio digno.
Crime prescritível. Crime imprescritível.
Afiançável. Inafiançável.
Ação penal pública condicionada à representação, conforme a Lei nº 12.033/2009. Ação penal pública incondicionada.

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo, Revista dos Tribunais cit., p. 671.


Leis estaduais que versam sobre preços de estacionamentos: crítica à jurisprudência do STF

1 de maio de 2011

Em diversos lugares, a cobrança de tarifas pelo uso do estacionamento de shopping centers ou supermercados causa revolta.  Muitos consumidores questionam a legitimidade dos valores exigidos por esses estabelecimentos, reputando-os excessivos. Em alguns Municípios e Estados, leis foram elaboradas para vedar ou limitar essa lucrativa cobrança.

O que poucos sabem é que, nos termos da jurisprudência pacífica do STF, é formalmente inconstitucional lei estadual que proíba a cobrança de valores pela utilização de estacionamento em local privado, seja ele uma loja de departamentos, um supermercado ou um shopping.

Para a Suprema Corte, tais leis violam a regra de competência de acordo com a qual cabe a União legislar sobre Direito Civil (art. 22, I, da Constituição Federal). Assim, assiste aos empresários a faculdade de explorar os estacionamentos como melhor lhes aprouver, pois se trata do exercício do direito de propriedade. Nesse sentido, o seguinte julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. ESTACIONAMENTO EM LOCAIS PRIVADOS. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AO ART. 22, I DA CONSTITUIÇÃO. Esta Corte, em diversas ocasiões, firmou entendimento no sentido de que invade a competência da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I da CF/88) a norma estadual que veda a cobrança de qualquer quantia ao usuário pela utilização de estabelecimento em local privado (ADI 1.918, rel. min. Maurício Corrêa; ADI 2.448, rel. Min. Sydney Sanches; ADI 1.472, rel. min. Ilmar Galvão).
Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (STF, ADI n. 1.623-RJ, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Informativo 623/2011)

 Pensamos que esse posicionamento merece críticas. É certo que cabe à União a competência privativa para legislar sobre Direito Civil. Contudo, no art. 24, incisos I e  VIII, da Constituição, confere-se competência concorrente para a União e os Estados legislarem sobre matérias como Direito Econômico e defesa do consumidor. Ora, a regulação da cobrança de valores pelo uso de estacionamento poderia ser enquadrada como legítimo exercício da competência suplementar dos Estados em Direito Econômico, na condição de limitação à propriedade.

Em grande parte, o modelo federal de perfil centralizar que vivemos sob o manto da Constituição Federal de 1988 deve-se a interpretações conservadoras da Suprema Corte.