Diferenças entre quadrilha, associação e organização criminosa

27 de julho de 2010

Na Lei nº 9.034/95 (“Lei das organizações criminosas”), encontram-se normas processuais que tratam dos procedimentos investigatórios e dos meios de prova relacionados aos ilícitos praticados por quadrilha ou bando, associações criminosas e organizações criminosas. Qual a diferença entre esses conceitos?

Quadrilha ou bando é uma associação estável e permanente de mais de 3 pessoas com o fim de praticar uma série indeterminada de crimes (exemplo: furtos, roubos e receptações). Nos termos do art. 288, a quadrilha é um crime autônomo. Por isso, consuma-se independentemente da prática dos delitos almejados pelos integrantes do grupo criminoso. No mundo real, é inviável desmantelar uma quadrilha antes de ter ocorrido ao menos um crime. Porém, se a quadrilha estiver devidamente constituída e praticar algum delito, responde-se pelo crime de quadrilha (art. 288) e pelo crime praticado, em concurso material.

Associação criminosa é a união estável e permanente de 2 ou mais pessoas para a prática de crimes específicos. A quadrilha tem sempre o fim de cometer crimes em geral, mas a associação destina-se ao cometimento de certos crimes. A associação é prevista nas seguintes leis: a) art. 35 da Lei nº 11.343/06 – Lei de Drogas; b) art. 2º da Lei nº 2.889/56 – Genocídio; c) Lei de segurança nacional (arts. 16 e 24 da Lei nº 7170/83 – aqui não há numero mínimo de integrantes). No mais, assim como a quadrilha, a associação é crime autônomo, consumando-se independentemente da prática dos crimes definidos em lei.

O conceito de organização criminosa, porém, oferece grandes dificuldades. Inicialmente, não há lei no Brasil definindo o que são essas organizações. Por isso, para uma prestigiada corrente doutrinária, os dispositivos que versam exclusivamente sobre organizações criminosas não possuem eficácia até que seja aprovada lei estabelecendo detalhadamente os traços da organização criminosa. Para uma outra corrente, diante da ausência de definição legal, pode-se utilizar a definição da Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, realizada em 15/12/2000). É o entendimento adotado pelo STJ em dois importantes julgados, realizados na Ação Penal nº 460 e no Habeas Corpus nº 77.771-SP.

De acordo com essa importante convenção internacional, organização criminosa “é o grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. Do conceito surgem os seguintes requisitos: a) no mínimo três pessoas; b) estrutura organizacional (“grupo estruturado”); c) estabilidade temporal (“há algum tempo”); d) propósito de cometer infrações graves; e) finalidade (obtenção de benefício moral ou econômico). A referida convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Decreto nº 5.015/2004.

A doutrina tem criticado o entendimento do STJ no sentido de reconhecer a eficácia da norma internacional para versar sobre organizações criminosas. Para Luiz Flávio Gomes, essa definição feita pela via de tratado internacional estaria a violar o princípio da legalidade em sua faceta “lex populi”, segundo a qual crimes e penas devem ser estabelecidos com participação dos representantes do povo na elaboração e na aprovação do texto final. Há quem diga também que o conceito adotado pela convenção é demasiadamente amplo, o que revelaria violação ao princípio da legalidade.


Separação judicial e divórcio após a EC nº 66, de 13 de julho de 2010

19 de julho de 2010

No dia 14 de julho de 2010, foi publicada uma Emenda Constitucional que operou uma revolução no Direito de Família brasileiro. Estamos falando da EC nº 66/2010, a qual procurou facilitar o acesso ao divórcio no Brasil, “suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.”

Para se entender o significado dessa alteração do texto constitucional, façamos uma breve diferenciação entre os institutos da separação e do divórcio.

Conforme ensinam os civilistas, o casamento é constituído pela sociedade conjugal e pelo vínculo conjugal. Com a separação judicial, ocorre o  fim da sociedade conjugal, cessando  os deveres de coabitação, fidelidade recíproca e o regime de bens. Contudo, a separação não acarreta o fim do vínculo matrimonial. Assim, pessoas separadas não poderiam se casar, embora a lei admitisse a possibilidade de terem união estável com terceiros (art. 1.723, § 1º, CC). Por outro lado, nada impedia que pessoas separadas  após reconciliação, voltassem a viver juntas, fazendo ressurgir a sociedade entre elas. Por sua vez, o divórcio é algo mais radical, pois significa a dissolução do vínculo matrimonial. Assim,  pessoas divorciadas  podem se casar novamente ou ter união estável. Ademais, uma vez divorciados, ex-marido e ex-esposa somente podem reconstituir a sociedade conjugal e o vínculo após novo casamento.

Antes da EC nº 66/2010, a separação judicial ou de fato era uma etapa a ser cumprida para se pleitear o divórcio. Esse obstáculo ao fim do vínculo matrimonial era imposto pelo art. 226, § 6º, da CF, segundo o qual: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.”

Após essa emenda constitucional, o art. 226, § 6º, da CF passou a ter uma redação mais simples: “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” Na realidade, por meio dessa simplificação, duas modificações de impacto foram feitas: a) o fim do instituto da separação judicial; b) a extinção “do prazo mínimo para a dissolução do vínculo matrimonial (eis que não há mais referência à separação de fato do casal há mais de dois anos).” (STOLZE, Pablo. A Nova Emenda do Divórcio: Primeiras Reflexões).

Portanto, a emenda permite que homem e mulher se casem hoje e, no outro dia, façam, se assim quiserem, o divórcio. Trata-se de algo relativamente fácil, pois a Lei n. 11.441/2007 regulou o divórcio administrativo, permitindo aos casais, sem filhos menores ou incapazes, a possibilidade de, consensualmente, lavrar escritura pública de divórcio, em qualquer Tabelionato de Notas do Brasil.

Antes da emenda da EC nº 66/2010, a consumação do divórcio era algo que a ordem jurídica evitava, imponde grandes dificuldades e entraves burocráticos. Vale dizer: para que ocorresse o divórcio era necessário que os cônjuges estivessem separados por algum tempo (um ano se a separação fosse judicial e dois se fosse de fato).

Acreditamos que essa emenda é positiva. Segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, “Além de reduzir a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos, a medida acarretará economia de recursos técnicos e financeiros para o Judiciário e para os indivíduos que pretendem se divorciar, uma vez que não serão necessários os dois processos, separação judical e divórcio”.

Para o professor da Rede LFG e magistrado na Bahia Pablo Stolze, “O que se quis, em verdade, por meio da aprovação da recente Emenda do Divórcio, é permitir a obtenção menos burocrática da dissolução do casamento, facultando, assim, que outros arranjos familiares fossem formados, na perspectiva da felicidade de cada um. Pois sem amor e felicidade não há porque se manter um casamento.”

A EC nº 66/2010 prova que, às vezes, uma simples alteração legislativa é suficiente para pôr abaixo correntes jurisprudências consolidadas, sólidas lições doutrinárias e livros jurídicos inteiros. Quando mudanças desse jaez se processam, doutrinadores terão que reescrever capítulos de suas obras; e igual trabalho terão os atualizadores, que passarão à condição de verdadeiros autores, reformulando radicalmente as obras de juristas finados.


Feliz Aniversário! Dois anos de idade!

14 de julho de 2010

Hoje é o aniversário do Opus Iuris! Vamos comemorar essa data especial, pois  já são dois anos na internet. Aos leitores do blog, obrigado pelos  incontáveis acessos e por interagirem conosco nessa grande empreitada movida apenas pelo prazer de escrever e de compatilhar ideias e conhecimentos.


A fungibilidade das tutelas de urgência satisfativa e cautelar

12 de julho de 2010

1. Introdução

Hoje voltaremos a tratar do processo civil, especificamente das tutelas de  urgência. Diante dos males do tempo sobre o andamento dos processos, as tutelas de urgência satisfativa e cautelar despertam grande interesse prático. Nesse contexto, uma importante medida tomada pelo legislador em prol da simplificação procedimental foi permitir a fungibilidade dessas medidas,  tema objeto do presente post.

2. Diferenças entre as tutelas satisfativa e assecuratória (cautelar)

A tutela jurisdicional pode ser satisfativa ou assecuratória.

Satisfativa é a tutela que permite a realização imediata do direito material postulado em juízo. Os processos de conhecimento e de execução são tipicamente satisfativos. Como regra, a tutela satisfativa somente é concedida, após o exame detalhado e aprofundado das provas e alegações, dentro daquilo que se chama cognição exauriente. Nesse caso, a decisão proferida é definitiva, fazendo coisa julgada material.

Contudo, em diversas situações, a lenta duração dos processos em geral pode ensejar o perecimento do direito postulado em juízo. Imagine-se o caso de alguém que, estando em situação terminal, busca, junto ao Poder Judiciário, o tratamento de uma doença grave. Nessas situações de urgência, o direito à saúde deve ser protegido, ainda que de forma provisória, em decisões baseadas em juízo de probabilidade (cognição sumária).

Nesse contexto, a antecipação de tutela é um provimento judicial que concede, após cognição sumária e de forma provisória, os efeitos da tutela definitiva satisfativa. É uma técnica processual criada para permitir a fruição imediata de um proveito que só ao final do processo poderia ser fruído.

Por sua vez, assecuratória é a tutela que objetiva conservar uma situação jurídica para garantir a futura satisfação de um direito. A tutela assecuratória se faz por meio de medidas cautelares. Exemplo: uma pessoa deve R$ 1.000.000,00 a um banco. Após o vencimento da obrigação, o sujeito começa a desviar seus bens para amigos e familiares (“laranjas”) para frustrar o pagamento. Nesse caso, é possível ao banco pedir o arresto dos bens do devedor. Com essa medida, o crédito não será satisfeito, mas, futuramente, poderá sê-lo, mediante a alienação forçada dos bens indisponíveis.

Tal como a maioria dos casos de tutela antecipada, a tutela cautelar envolve situações de urgência (“periculum in mora”) sendo concedida após cognição sumária; porém, não satisfaz o direito, limitando-se a assegurar, no futuro, a possibilidade de satisfação desse direito.

3. Breve histórico do desenvolvimento da tutela antecipada

Ao tempo da edição do CPC (1973), a tutela antecipada satisfativa só existia em certos procedimentos especiais, a exemplo das ações possessórias e do mandado de segurança. Assim, nos casos em que a tutela antecipada não estivesse prevista em algum procedimento especial, os advogados manejavam “cautelares inominadas” para obter tutelas antecipadas satisfativas, com base nos art. 798 e 804 do CPC, que tratam, respectivamente, do poder geral de cautela e da liminar no processo cautelar. Evidentemente, houve uma descaracterização do processo cautelar, cuja finalidade não é satisfazer um direito, mas assegurá-lo.

No final de 1994, essa situação muda radicalmente. Por força da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994, introduziu-se, no procedimento comum, a possibilidade de tutela antecipada satisfativa genérica. Agora, qualquer providência satisfativa pode ser concedida antecipadamente. O sistema tornou-se completo, pois, salvo expressa proibição legal (como aquelas que se aplicam a Fazenda Pública), não há demanda cujo objeto não se possa ser concedida antecipadamente.

A tutela antecipada foi generalizada nos seguintes dispositivos do CPC: a) art. 273 (aplicável às obrigações de dar dinheiro, ações constitutivas ou ações declaratórias); b) art. 461, § 3º, e art. 461-A (aplicável às obrigações de fazer, não-fazer e dar coisa diferente de dinheiro. Como conseqüência dessa universalização, certos procedimentos especiais perderam parcela de importância e interesse (pois eram os únicos que comportavam tutela antecipada).

4. A fungibilidade das tutelas de urgência

No ano de 2002, outra grande inovação atingiu o sistema das tutelas de urgência previstas no processo civil. Em decorrência da Lei nº 10.444/2002, foi introduzido o seguinte dispositivo no CPC:

“Art. 273, § 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado. (Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)”

Esse dispositivo consagrou uma revolução, permitindo à parte obter tutela cautelar no bojo do processo de conhecimento. Antes as tutelas cautelares, como regra, eram obtidas através do processo cautelar. Se há necessidade de uma tutela de urgência, seja ela satisfativa ou cautelar, pode-se concedê-la no processo de conhecimento. Contudo, isso não impede que a tutela cautelar seja postulada em processo autônomo. Há, portanto, duas vias para a parte buscar uma medida assecuratória.

Muitos sustentam que o § 7º do art. 273 consagrou a fungibilidade das tutelas de urgência. Para o processualista Fredie Didier, essa fungibilidade deve ser vista com ressalvas, pois a concessão incidental de tutelar cautelar nos mesmos autos do processo de conhecimento, diferentemente de outros casos de fungibilidade (como a recursal), não pressupõe o erro do autor. Na realidade, o art. 273, § 7º, seria mais um caso de sincretismo processual.

Na doutrina, questiona-se se o sujeito pode, no processo cautelar, pedir tutela antecipada satisfativa (“fungibilidade de mão dupla”). Atualmente, não há mais sentido em buscar tutela antecipada no âmbito de processo cautelar autônomo, pois isso traz prejuízo ao réu, eis que o processo cautelar tem procedimento mais simples, inclusive com prazo de defesa de 5 dias. Se o juiz entender cabível a fungibilidade, deverá corrigir o manejo indevido do processo cautelar, transformando-o em processo de conhecimento.


Felipe Melo: eu o declaro culpado!

2 de julho de 2010

Sempre que o Brasil perde alguma  Copa do Mundo, a imprensa e a opinião pública escolhem um jogador para imputar a responsabilidade pelo fiasco.

Na Copa de 1990 realizada na Itália, o culpado pela derrota brasileira perante a Argentina, ainda nas oitavas de final, foi o jovem volante Dunga; na Copa de 1998, o responsável pela derrota do Brasil contra a França na final foi o “fenômeno” Ronaldo, acusado de “amarelar” na noite que antecedeu aquele trágico jogo. Na Copa da Alemanha em 2006, sobrou para Roberto Carlos, a quem se atribuiu o ato culposo de arrumar a meia, enquanto a Thierry Henry empurrava a bola para o fundo do gol.

Na Copa da África do Sul, é fácil eleger um culpado pela derrota canarinha perante a Holanda: Felipe Melo, volante de 27 anos de idade, nascido em Volta Rendonda, Rio de Janeiro.

Durante toda a competição, o único momento de bom futebol mostrado  por Felipe Melo foi um bom passe  que deixou Robinho na cara do gol, permitindo ao craque abrir o placar na partida contra a Holanda. Contudo, as  inúmeras trapalhadas do volante vão apagar da memória aquele lampejo de inspiração. Na história, ficarão registrados o gol-contra e a pisada que lhe  rendeu a expulsão em momento crítico da partida, fato que arrasou o esquema tático do Brasil.

Felipe Melo não é forte  no futebol-arte. Foi escolhido por ser considerado um jogador de entradas duras. Dunga, nesse ponto, é culpado por escalá-lo. Antes da Copa, Melo havia sido expulso cinco vezes nas duas últimas temporadas, duas atuando pela Fiorentina, duas jogando pela Juventus e uma pela seleção do Brasil, nas eliminatórias para a Copa contra o Chile.

Curiosamente, muito antes da partida do Brasil contra a Holanda, o colunista Diogo Mainardi da revista Veja, mesmo não conhecendo muita coisa sobre futebol, havia feito uma crítica contundente contra Felipe Melo. Foi uma advertência sobre o que estava por vir.  De forma profética, o irônico jornalista, no artigo “A comédia da Copa”, deixou para eternidade as seguintes palavras:

“Mas o jogador do Brasil com o qual realmente me identifico é Felipe Melo. Sempre que, durante o programa de rádio, Wanderley Nogueira me passa a bola, eu me embanano todo e, como Felipe Melo, acabo recuando para o zagueiro. Na Copa do Mundo, minha torcida será inteirinha para ele. Ele me representa. Vai, Felipe Melo! Mostre ao mundo do que é capaz uma pessoa sem talento, sem juízo e sem discernimento.”

É isso mesmo, Mainardi.  De fato, Felipe Melo mostrou ao mundo do que é capaz. Provavelmente, nunca mais vestirá a camisa verde e amarela.