1. Diferença: função social e boa-fé objetiva
A teoria contratual contemporânea tem como protagonistas os seguintes princípios sociais: a) boa-fé objetiva; b) função social; c) equivalência material. Evidentemente, os princípios clássicos decorrentes do liberalismo não foram derrogados. Contudo, é inegável que a autonomia privada, a intangibilidade e a relatividade subjetiva dos contratos sofreramuma verdadeira releitura.
A boa-fé objetiva (art. 422, CC) é horizontal e endógena (diz respeito à relação entre as partes. Ao celebrar um contrato, as partes devem manter um padrão de comportamento marcado pela lealdade, honestidade e cooperação, de modo que um não lese a legítima confiança depositada pelo outro. Esse modelo de conduta é a boa-fé objetiva. Subjetivamente, um contratante muitas vezes não tem a intenção de agir de má-fé, lesando os legítimos interesses do outro; contudo, se concretamente seu comportamento violar esse padrão de ética e lealdade, o princípio da boa-fé objetiva poderá ser invocado pela parte prejudicada.
A função social do contrato é vertical e exógena (art. 421, CC). Função significa “utilidade, uso ou serventia”. Social é aquilo que interessa à sociedade. Logo, o aspecto gramatical revela em grande parte o conteúdo do princípio: os contratos devem ter conteúdo em consonância com os interesses sociais elementares.
Sob uma ótica civil-constitucional, a função social do contrato é uma derivação dos princípios que norteiam a ordem econômica, especialmente a função social da propriedade. Diz a doutrina: “A propriedade é o aspecto estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular”. (GAMA, Guilherme Calmon de Nogueira da. Função Social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 79)
2. Manifestações da função social do contrato
Sistematicamente, três são as formas de manifestação do princípio da função social dos contratos: a) proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana; b) tutela externa do crédito; c) proibição da figura do terceiro ofensor. Vejamos:
2.1. Proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana
A função social permite que o Poder Público intervenha em contrato com a finalidade de invalidar cláusulas que ofendam interesses difusos e coletivos, tais como o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, a defesa do consumidor ou a livre concorrência. A função social também permite que sejam anulados ou mesmo obstados contratos que violem a dignidade da pessoa humana. Ex.: contratos de cessão de imagens lesivos à imagem de minorias. Nesse caso, o contratante é reduzido a mero objeto de divertimento alheio, algo inconcebível no contexto da atual Constituição. Nesse sentido, o enunciado 23 das jornadas de Direito Civil:
23 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
2.2. Tutela externa do crédito
É possível que a função social do contrato seja cumprida entre as partes e não ofenda interesses coletivos. Contudo, mesmo nessa hipótese, o princípio em tela não será integralmente cumprido se o contrato violar interesse de terceiro ofendido. Esse aspecto da função social liga-se à tutela externa do crédito.
Normalmente a relação de crédito é interna; contudo, em certas situações, o contrato produz efeitos em relação a terceiros, ultrapassando os limites subjetivos originais. É o caso do contrato de seguro, no qual seu conteúdo vai além da relação com o contratante. Por isso, é possível ao terceiro demandar diretamente a seguradora. No art. 788 do CC (seguro obrigatório), já expressamente permitido demandar-se diretamente a empresa de seguro. Sobre a tutela externa do crédito, veja-se o seguinte enunciado das jornadas de Direito Civil:
21 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.
Um outro exemplo de aplicação da tutela externa do crédito envolve o sistema financeiro da habitação. Em muitos casos, o consumidor celebra contrato de promessa de compra e venda com uma construtora, tornado-se promitente comprador. Nesse caso, o promitente é mero possuidor, eis que somente adquirirá a propriedade quando quitar todas as prestações.
Se durante esse contrato de promessa de compra e venda, a construtora celebrar mútuo com instituição financeira, dando aquele bem imóvel como garantia, a hipoteca respectiva não terá eficácia perante o promitente comprador. Caso a construtora não pague as obrigações, o consumidor não poderá ser prejudicado pelo gravame. Mais uma vez, trata-se de reflexo da função social do contrato, enquanto princípio que protege terceiros em face de contratos alheios. A seguinte súmula do STJ concretiza esse princípio:
Súmula nº 308 – A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.
2.3. A figura do terceiro ofensor: o caso Zeca Pagodinho versus Nova Schin
O contrato é um ato de intercâmbio de bens e de serviços. É a vestimenta jurídica da circulação de bens e de serviços. Muito antes de uma função social, há uma função econômica nas relações obrigacionais.
O terceiro ofensor pratica a chamada interferência ilícita, induzindo maliciosamente uma das partes a contratar com ele, provocando a morte precipitada do contrato anterior. Trata-se conduta perniciosa, pois quebra a confiança que deve existir no âmbito negocial.
O mundo publicitário brasileiro nos fornece um caso clássico.
O cantor Zeca Pagodinho e a empresa Nova Schin possuíam um contrato de cessão de imagem. A AMBEV interferiu nessa relação assumindo a condição de terceira ofensora, pois contratou Zeca, o qual ainda fez pilheria da antiga empresa numa campanha publicitária da Brahma. Nesse caso, há várias conseqüências jurídicas decorrentes do princípio da função social dos contratos: a) a nova Schin pode processar Zeca Pagodinho, pois este, no publicidade da AMBEV, ofendeu a honra objetiva da empresa ; b) a nova Schin também poderá processar a AMBEV, pois a função social do contrato repele a figura do terceiro ofensor.