Irmãos xipófagos e o crime de homicídio

25 de abril de 2011

1. O tema do post. Embora a criminologia e os repositórios de jurisprudência não registrem um só caso envolvendo o tema que iremos tratar nesse post, é importante adiantar que se trata de assunto controvertido na doutrina pátria. Para se ter uma idéia, grandes autores como Guilherme de Sousa Nucci, Rogério Sanches Cunha, Flávio Monteiro de Barros e Custódio de Oliveira dedicam substanciosas laudas de seus livros de Direito Penal ao homicídio praticado por indivíduos xipófagos ou contra pessoas com essa característica. Xipófagos são os gêmeos que estão ligados entre si por uma parte do corpo, ou que têm uma parte do corpo comum aos dois.

2. O crime de homicídio. De forma sintética, o crime de homicídio, tipificado no art. 121 do Código Penal, pode ser definido como sendo “a destruição da vida de um homem praticada por outro.” . Segundo Nelson Hungria, o homicídio é “o ponto culminante na orografia dos crimes”, sendo, numa sociedade civilizada, a “mais chocante violação do senso médio de moralidade.”

3. Sujeitos do crime. O homicídio é crime comum, podendo ser cometido por qualquer pessoa, não se exigindo qualidade especial do agente. Da mesma forma, não se exige qualquer qualidade especial do sujeito passivo (vítima).

3.1. Xipófago como sujeito ativo. Imaginemos dois irmãos xipófagos. Um deles, de má índole, deseja matar uma pessoa, mas o outro não o quer. Se o xipófago maldoso matá-la, praticará a conduta do art. 121 do CP, podendo ser punido pelo ato; porém, ocorrendo eventual condenação do assassino, o outro irmão, por estar unido fisicamente ao assassino, acabará sofrendo a pena de crime que não cometeu. Nesse excêntrico caso, verifica-se uma colisão entre o direito à liberdade do irmão inocente e o interesse público em se punir o assassino. Acerca da solução a ser dada, a doutrina é divergente:

1ª Corrente: apesar da ocorrência do crime do art.121 do CP, a absolvição se impõe, pois a eventual aplicação da pena importaria em injusto reflexo sobre o irmão inocente. Assim, o status libertatis prevalece sobre o direito de o Estado punir. É a posição de Guilherme de Souza Nucci: “A absolvição se justifica, como diz Manzini, porque conflitando o interesse do Estado ou da sociedade com o da liberdade individual, esta última deve prevalecer”.

2ª Corrente: o assassino xipófago deve ser condenado, porém só cumprirá a pena no dia que o outro irmão cometer crime e ser condenado por pena privativa de liberdade. É o posicionamento de Flávio Augusto Monteiro de Barros, tal como informa Rogério Sanches Cunha.

3.2. Xipófagos como sujeito passivo. Nesse caso, haverá um duplo homicídio, respondendo o agente pelo crime do art. 121 cumulado com o art. 70, caput, segunda parte, do Código Penal (homicídio em concurso formal impróprio). A pena é aplicada de forma cumulativa, uma vez que o agente tem desígnios autônomos (vontade de matar cada um dos irmãos).


A aposentadoria especial e professor readaptado em biblioteca: limites e possibilidades

10 de abril de 2011

1. Objeto. O presente post tem como finalidade discutir se o professor readaptado em biblioteca faz jus à aposentadoria especial de que trata o art. 40, § 1º, III, “a”, e § 5º, da CF. Diante da grande demanda de questionamentos acerca da aposentadoria especial do professor readaptado, resolvemos fazer um texto exclusivo sobre o tema.

2. O que é readaptação? A readaptação é um instituto previsto nos diversos estatutos de servidores públicos dos entes da federação. Tecnicamente, trata-se de uma forma de provimento derivado, por força da qual o servidor deixa um cargo antigo e assume um novo cargo, não sofrendo ascensão ou rebaixamento. O que motiva esse provimento são limitações físicas e mentais supervenientes.

3. A velha jurisprudência sobre o tema. Até bem pouco tempo atrás, era inconcebível a concessão de aposentadoria especial a um professor readaptado. É que as atividades exercidas pelo servidor beneficiado pela readaptação ocorrem fora do âmbito da sala de aula, geralmente, em rotinas burocráticas do serviço público. Assim, haveria a incidência da atualmente superada Súmula nº 726 do STF, segundo a qual “para efeito de aposentadoria especial de professores, não se computa o tempo de serviço prestado fora da sala de aula”. Por isso, o STJ rejeitou o aproveitamento do período de readaptação para beneficiar os professores:

“O período em que o recorrente-professor ficou afastado por problemas de saúde, de 1969 até 1973, quando se beneficiou do instituto da “readaptação”, não pode ser computado para fins de aposentadoria especial, pois nele não foram desenvolvidas funções inerentes ao magistério. Inteligência do art. 40, III, “b”, da Constituição Federal. Recurso desprovido.” (STJ, ROMS 199900079116, José Arnaldo Da Fonseca, Quinta Turma, 04/06/2001)

4. A nova jurisprudência. Atualmente, prevalece que, em certas situações, o professor readaptado pode gozar da aposentadoria especial, sobretudo, após o julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 3772, na qual o STF julgou constitucional o art. 67, § 2º, da Lei nº 9.394/1996, com redação dada pela Lei nº 11.301/2006:

“Art. 67……………

§ 2º Para os efeitos do disposto no § 5º do art. 40 e no § 8º do art. 201 da Constituição Federal, são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.”

É certo que, no julgamento desse dispositivo, o STF fixou interpretação no sentido de que o citado dispositivo somente beneficiaria os professores (mas não os especialistas em educação) no desempenho de atividades de magistério em sala de aula e nas atividades de direção de unidade escolar, de coordenação e assessoramento pedagógico.

Como conseqüência dessa decisão, é evidente que, se após a readaptação, um professor passar a exercer funções de direção de unidade escolar, de coordenação e assessoramento pedagógico, o período respectivo pode ser aproveitado para fins do § 5º do art. 40 da CF. A seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal corrobora esse entendimento:

“Sendo professora, readaptada em razão de doença adquirida no trabalho, continuando a exercer atividades pedagógicas em funções correlatas às do magistério, faz jus ao cômputo desse período de tempo de serviço para fins de aposentadoria especial, prevista no art. 40, §5º, da Constituição Federal.”(TJDF, 20080110368530APC, Relator Flavio Rostirola, 1ª Turma Cível, julgado em 04/11/2009, DJ 23/11/2009 p. 100)

5. Aposentadoria especial e professor readaptado em biblioteca. Feitas essas considerações, voltemos o olhar para o tema em análise.

Evidentemente, se após a readaptação na ambiência de uma biblioteca o professor limitar-se a execução de tarefas e funções meramente administrativas e burocráticas, não há que se falar no direito à aposentadoria especial. Contudo, se após a readaptação, o professor trabalhar em biblioteca estimulando a leitura dos alunos, é correto afirmar que fará jus ao benefício, pois sua atividade será de magistério. No I Encontro Nacional de Coordenadores das Universidades Públicas Brasileiras, o trabalho de docência foi definido nestes termos:

“O trabalho docente caracteriza-se como processos e práticas de produção, organização, difusão e apropriação de conhecimentos que se desenvolvem em espaços educativos escolares e não-escolares, sob determinadas condições históricas. Nesta perspectiva, o docente define-se como um sujeito, em ação e interação com o outro, produtor de saberes na e para a realidade. A docência define-se, pois, como ação educativa que se constitui no ensino-aprendizagem, na pesquisa e na gestão de contextos educativos, na perspectiva da gestão democrática”.[1]

6. Conclusão. Diante desse quadro conceitual, é plausível a tese no sentido de que o professor readaptado em biblioteca, trabalhando junto aos alunos da instituição em atividade de estimulo à leitura, pode ser beneficiado pelo disposto no § 2º do art. 67 da Lei nº 9.394, de 20.12.1996 e no § 5º do art. 40 da CF. De fato, parece razoável o entendimento de que a docência não se resume ao trabalho com o “quadro negro” e o “giz”, podendo englobar outras atividades de ensino e aprendizagem.



A função social do contrato

4 de abril de 2011

1. Diferença: função social e boa-fé objetiva

A teoria contratual contemporânea tem como protagonistas os seguintes princípios sociais: a) boa-fé objetiva; b) função social; c) equivalência material. Evidentemente, os princípios clássicos decorrentes do liberalismo não foram derrogados. Contudo, é inegável que a autonomia privada, a intangibilidade e a relatividade subjetiva dos contratos sofreramuma verdadeira releitura.

A boa-fé objetiva (art. 422, CC) é horizontal e endógena (diz respeito à relação entre as partes. Ao celebrar um contrato, as partes devem manter um padrão de comportamento marcado pela lealdade,  honestidade e cooperação, de modo que um não lese a legítima confiança depositada pelo outro. Esse modelo de conduta é a boa-fé objetiva. Subjetivamente, um contratante  muitas vezes não tem a intenção de agir de má-fé, lesando os legítimos interesses do outro; contudo, se concretamente seu comportamento violar esse padrão de ética e lealdade, o princípio da boa-fé objetiva poderá ser invocado pela parte prejudicada.

A função social do contrato é vertical e exógena (art. 421, CC). Função significa “utilidade, uso ou serventia”. Social é aquilo que interessa à sociedade. Logo, o aspecto gramatical revela em grande parte o conteúdo do princípio: os contratos devem ter conteúdo em consonância com os interesses sociais elementares.

Sob uma ótica civil-constitucional, a função social do contrato é  uma derivação dos princípios que norteiam a ordem econômica, especialmente a função social da propriedade. Diz a doutrina: “A propriedade é o aspecto estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular”. (GAMA, Guilherme Calmon de Nogueira da. Função Social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 79)

2. Manifestações da função social do contrato

Sistematicamente,  três são as formas de manifestação do princípio da função social dos contratos: a) proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana; b) tutela externa do crédito; c) proibição da figura do terceiro ofensor. Vejamos:

2.1. Proteção de interesses difusos e do princípio da dignidade da pessoa humana

A função social permite que o Poder Público intervenha em contrato com a finalidade de invalidar cláusulas que ofendam interesses difusos e coletivos, tais como o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, a defesa do consumidor ou a livre concorrência. A função social também permite que sejam anulados ou mesmo obstados contratos que violem a dignidade da pessoa humana. Ex.: contratos de cessão de imagens lesivos à imagem de minorias. Nesse caso, o contratante é reduzido a mero objeto de divertimento alheio, algo inconcebível no contexto da atual Constituição. Nesse sentido, o enunciado 23 das jornadas de Direito Civil:

23 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.

2.2. Tutela externa do crédito

É possível que a função social do contrato seja cumprida entre as partes e não ofenda interesses coletivos. Contudo, mesmo nessa hipótese, o princípio em tela não será integralmente cumprido se o contrato violar interesse de terceiro ofendido.  Esse aspecto da função social liga-se à tutela externa do crédito.

Normalmente a relação de crédito é interna; contudo, em certas situações, o contrato produz efeitos em relação a terceiros, ultrapassando os limites subjetivos originais. É o caso do contrato de seguro, no qual seu conteúdo vai além da relação com o contratante. Por isso, é possível ao terceiro demandar diretamente a seguradora. No art. 788 do CC (seguro obrigatório), já expressamente permitido demandar-se diretamente a empresa de seguro.  Sobre a tutela externa do crédito, veja-se o seguinte enunciado das jornadas de Direito Civil:

21 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

Um outro exemplo de aplicação da tutela externa do crédito envolve o sistema financeiro da habitação. Em muitos casos, o consumidor celebra contrato de promessa de compra e venda com uma construtora, tornado-se promitente comprador. Nesse caso, o promitente é mero possuidor, eis que somente adquirirá a propriedade quando quitar todas as prestações.

Se durante esse contrato de promessa de compra e venda, a construtora celebrar mútuo com instituição financeira, dando aquele bem imóvel como garantia, a hipoteca respectiva não terá eficácia perante o promitente comprador. Caso a construtora não pague as obrigações, o consumidor não poderá ser prejudicado pelo gravame. Mais uma vez, trata-se de reflexo da função social do contrato, enquanto princípio que protege terceiros em face de contratos alheios. A seguinte súmula do STJ concretiza esse princípio:

Súmula nº 308 – A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

2.3. A figura do terceiro ofensor: o caso Zeca Pagodinho versus Nova Schin

O contrato é um ato de intercâmbio de bens e de serviços. É a vestimenta jurídica da circulação de bens e de serviços. Muito antes de uma função social, há uma função econômica nas relações obrigacionais.

O terceiro ofensor pratica a chamada interferência ilícita, induzindo maliciosamente uma das partes a contratar com ele, provocando a morte precipitada do contrato anterior. Trata-se conduta perniciosa, pois quebra a confiança que deve existir no âmbito negocial.

O mundo publicitário brasileiro nos fornece um caso clássico.

O cantor Zeca Pagodinho e a empresa Nova Schin possuíam um contrato de cessão de imagem. A AMBEV interferiu nessa relação assumindo a condição de terceira ofensora, pois contratou Zeca, o qual ainda fez pilheria da antiga empresa numa campanha publicitária da Brahma. Nesse caso, há várias conseqüências jurídicas decorrentes do princípio da função social dos contratos: a) a nova Schin pode processar  Zeca Pagodinho, pois este, no publicidade da AMBEV, ofendeu a honra objetiva da empresa ; b) a nova Schin também poderá processar a AMBEV, pois a função social do contrato repele a figura  do terceiro ofensor.


A suspensão de concursos públicos e nomeações na Era Dilma

1 de abril de 2011

Pouco depois de tomar posse, a Presidente Dilma anunciou que tomaria medidas para a contenção de gastos com pessoal. No total, o Poder Executivo da União pretende economizar R$50,7 bilhões no Orçamento, exatamente para evitar que um surto inflacionário tome conta do Brasil.

A protagonista desses cortes de despesas é a Ministra do Planejamento Miriam Belchior, a qual divulgou na imprensa uma dura política de suspensão da realização de novos certames e de novas admissões, salvo em situações excepcionais devidamente reconhecidas. Tal fato deixou os concurseiros apreensivos.

Até bem pouco tempo, as medidas de contingenciamento ainda não haviam se convertido em norma jurídica. Ocorre que, em 28 de março, foi publicada a Portaria nº 39, de 25 de março de 2011, que disciplinou o tema, suspendendo por prazo indeterminado os certames federais e admissões de pessoal, nestes termos:

“A MINISTRA DE ESTADO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO, no uso de suas atribuições e tendo em vista a delegação de competência prevista no art. 10 do Decreto nº 6.944, de 21 de agosto de 2009, resolve:

Art. 1º Suspender, por tempo indeterminado, os efeitos das portarias de autorização para realização de concursos públicos e de autorização para provimento de cargos públicos no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional publicadas até a presente data.

§ 1º – O disposto no caput não prejudicará:

I – o provimento dos cargos cujas nomeações foram publicadas até a data da publicação desta Portaria;

II – a realização de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993; e

III – a conclusão dos cursos ou programas de formação iniciados antes da publicação desta Portaria, nos concursos realizados em duas ou mais etapas, ficando o provimento decorrente condicionado à autorização específica da Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão.

§2º A realização de cursos ou programas de formação que não tenham se iniciado até a data da entrada em vigor desta Portaria também fica condicionada à autorização específica da Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.”

Portanto, na Era Dilma, novas admissões e concursos somente poderão ocorrer, mediante expressa autorização da Ministra Belchior.