Reflexão sobre os 25 anos da Constituição da República Federativa do Brasil

5 de outubro de 2013

Acevo câmara

A Constituição brasileira promulgada em 05 de outubro de 1988 completou 25 anos de vigência. O momento é um convite à reflexão.

 Ao longo de sua história, o Estado brasileiro marcou-se por profunda instabilidade política. Em diversos momentos (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), outorgaram-se ou promulgaram-se sucessivas constituições, plasmadas por revoluções, golpes e acordos institucionais. A Constituição de 1988 é uma das mais duradouras. Sua vigência temporal é inferior apenas à das Constituições de 1824 e de 1891.

A Constituição de 1824 perdurou, aproximadamente, por 69 anos. Outorgada por Dom Pedro I, “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos”, a vetusta carta regeu uma dinastia monárquica. Sob o ponto de vista social, permitiu a reprodução de uma sociedade rural, profundamente autoritária e hierarquizada, marcada pelo flagelo da escravidão.

Por sua vez, a Constituição de 1891 durou quase 40 anos e inaugurou a República e o Estado federal. Por meio dela, separaram-se, definitivamente, a Igreja e o Estado e se introduziu o controle de constitucionalidade difuso. Apesar dos avanços, o texto liberal e descentralizador incentivou o coronelismo, a república do “café com leite” e os conflitos sociais decorrentes da urbanização e industrialização do início do século XX.

Diferentemente das Constituições de 1824 e 1891, que muito duraram por serem reflexos do que Lassale denominou fatores reais de poder, a Constituição de 1988, embora deles não tenha se desvencilhado completamente, procurou estabelecer um projeto de sociedade, direcionado para a transformação e inclusão.

De fato, em 05 de outubro de 1988, marcou-se a passagem para um novo momento histórico. Seus antecedentes remontam aos movimentos sociais surgidos na década de oitenta e à resistência política contra regime ditatorial pós-1964. Seu texto orienta-se pelos valores da democracia, do pluralismo e da dignidade humana. Um vasto rol de direitos e garantias fundamentais foi positivado e, ano a ano, enriquecido pela atuação judicial e por novas concepções doutrinárias.

 Na moldura normativa da Lei Fundamental, vieram à luz grupos e setores sociais esquecidos como empregados domésticos (art. 7º, parágrafo único), os garimpeiros (art. 174, § 3º), os índios (art. 231 e 232), os seringueiros (art. 54 do ADCT), os soldados da borracha (art. 54, 1º, do ADCT) e os quilombolas (art. 68 do ADCT). As mulheres passaram a ter igualdade jurídica plena e a família patriarcal matrimonializada deixou de ser a única legitimada, ante o reconhecimento da união estável (art. 226, § 3º) e das uniões homoafetivas (STF, ADC 132 e ADI 4277).

O texto, evidentemente, não é perfeito. Em muitos pontos, é assistemático. Em outros, positiva temas tipicamente infraconstitucionais. Por serem detalhados e específicos, tais dispositivos tendem a ser reformados constantemente, o que, por exemplo, se deu com todo um arcabouço de regras e princípios sobre servidores públicos, regimes de previdência e sistema tributário, que foram objetos das Emendas Constitucionais n.ºs 03, 18, 19, 20, 21, 40, 41, e 47.

Embora também tenha cristalizado privilégios, a atual constituição permitiu um ensaio de autodeterminação da sociedade civil perante o Estado.  Sob o seu manto, haverá de ser superado patrimonialismo, cujos reflexos atuais são a corrupção e a concentração de privilégios em prol de setores estatais e privados.

Os anos vindouros exigem a busca pela força normativa da Constituição, a qual não brota magicamente de seu texto, mas da consciência geral e do compromisso, sobretudo, dos responsáveis pela ordem social e política de que ela, a Constituição, é essencial para evitar o autoritarismo e o poder dos fatos. Essa consciência acerca da importância da lei fundamental é o que Konrad Hesse chamou de “vontade da constituição“. Assim, devem ecoar as palavras de Ulisses Guimarães, proferidas na promulgação da carta em 05 de outubro de 1988:

“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da Democracia.”

De forma otimista, espera-se que a Constituição dure mais 25 anos, refletindo a trajetória de sucesso das Constituições da Itália, Alemanha, Portugal e Espanha. Que as gerações futuras colham os frutos das sementes plantadas pela atual geração.


Caso Escher e outros vs. Brasil (2009)

5 de julho de 2013

CIDH

No presente post, será feito um resumo da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Esher e outros vs. Brasil. O contexto fático do litígio ocorre nos conflitos sociais em prol da reforma agrária no Estado do Paraná. Na decisão da CIDH, analisa-se, sobretudo, o conteúdo do direito à privacidade (no art. 11 do Pacto de São José da Costa Rica), o qual, na espécie, foi violado por decisão judicial brasileira.

O caso perante à República Federativa do Brasil

Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni eram membros da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais – ADECON e da Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda – COANA, as quais mantinham relações com o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, no Estado do Paraná.

No dia 5 de maio de 1999, a Polícia Militar do Paraná requereu ao Juízo de Direito da Comarca de Loanda interceptação e monitoramento de linha telefônica, instalada na sede da COANA. Alegou-se que essa entidade estaria sendo utilizada “pela liderança do MST para práticas delituosas”, tais como o desvio de recursos de financiamentos rurais. Ademais, reputou-se necessária a quebra do sigilo telefônico para a investigação de homicídio.

No mesmo dia, a juíza Elisabeth Khater autorizou a interceptação telefônica, mediante simples despacho à mão “na margem da petição, na qual escreveu ‘R[ecebido] e A[nalisado]. Defiro. Oficie-se. Em 05.05.99′”. O Ministério Público não foi notificado. Novamente, a polícia militar, sem qualquer fundamentação, pediu a interceptação de outra linha telefônica da COANA e de linha da ADECON. Da mesma forma, a decisão de deferimento foi lacônica e o parquet, ignorado.

As gravações vazaram para a Rede Globo e acabaram expostas no Jornal Nacional, na noite de 07/06/1999. No dia seguinte, o Secretário de Segurança Pública do Paraná fez coletiva com a imprensa e expôs parte do conteúdo de algumas conversas.

Um ano depois, os autos foram enviados ao Ministério Público estadual, o qual emitiu parecer com as seguintes conclusões: a) os policiais militares requerentes, além de não terem vínculos com a Comarca, não presidiam qualquer investigação, sendo partes ilegítimas; b) o pedido foi requerido sem qualquer conexão com inquérito ou processo em curso; c) o segundo pedido de interceptação não foi motivado; d) o procedimento de quebra não foi anexado a qualquer processo; e) as decisões judiciais não foram fundamentadas. Ao final, o Ministério Público concluiu que as interceptações tiveram fim exclusivamente político, “em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação”.

Assim, a pedido dos movimentos sociais, o MP enviou notitia criminis ao Tribunal de Justiça em face do ex-secretário, da magistrada e dos militares envolvidos. A investigação criminal foi arquivada por decisão da Corte Especial, a qual ordenou apenas a remessa dos autos ao primeiro grau a fim de se analisar a conduta do ex-secretário, em razão da suposta divulgação ilícita dos diálogos interceptados. Concluída a investigação, foi apresentada denúncia contra a referida autoridade, havendo condenação em primeira instância; contudo, o Tribunal de Justiça a absolveu, sob o fundamento de que não houve quebra, pois os “dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão.”

Em relação à juíza, o procedimento administrativo para apurar falta funcional foi arquivado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça. Em seguida, após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República enviou o caso ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ. O procedimento foi igualmente arquivado, sob a justificativa de que a rejeição da ação penal foi exaustiva, não deixando margem para qualquer processo administrativo.

O caso perante o Sistema Interamericano de Direito Humanos

Inconformadas com o grampo, as organizações Rede Nacional de Advogados Populares e a Justiça Global, em nome dos membros das CONAE e da ADECON, peticionaram, em 26/12/2000, à Comissão Interamaricana de Direitos Humanos, alegando que interceptação telefônica feita pelo Juízo de Direito da Comarca de Loanda violou o direito à privacidade e o Estado Brasileiro não tomou medidas adequadas e efetivas para reparar os danos decorrentes.

Em 20/12/2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou demanda à CIDH, aduzindo que, em razão dos fatos antes descritos, o Brasil violou os seguintes artigos do Pacto de São José da Costa Rica): 8.1 (Garantias Judiciais), 11 (Proteção da Honra e da Dignidade), 16 (Liberdade de Associação) e 25 (Proteção Judicial).

Na Corte, foram apresentadas petições pelas partes e ouvidas diversas testemunhas. A fim de analisar a interceptação telefônica à luz do direito brasileiro, emitiram laudos, como peritos, Luiz Flávio Gomes, o qual foi indicado pela Comissão Interamericana, e Maria Thereza Rocha de Assis Moura, indicada pelo Brasil.

O conteúdo da sentença da CIDH

Em 10 de junho de 2009, foi prolatada a sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.  No mérito, a Corte assentou que “o artigo 11 da Convenção proíbe toda ingerência arbitrária ou abusiva na vida privada das pessoas, enunciando diversos âmbitos da mesma como a vida privada de suas famílias, seus domicílios e suas correspondências.”

Em relação ao art. 11, consta, na sentença, que esse dispositivo convencional “protege as conversas realizadas através das linhas telefônicas instaladas nas residências particulares ou nos escritórios, seja seu conteúdo relacionado a assuntos privados do interlocutor, seja com o negócio ou a atividade profissional que desenvolva”. Estariam albergadas pela proteção à vida privada “qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas.”

Quanto à interceptação telefônica, a CIDH afirmou que essa medida somente se legitima em face da Convenção Americana se cumprir os seguintes requisitos: “a) estar prevista em lei, b) perseguir um fim legítimo; c) ser idônea, necessária e proporcional.” Assim, em verdadeiro controle de convencionalidade, entendeu-se que a Lei n. 9.296/96 está em conformidade com a Convenção. Por conseguinte, considerando que a interceptação realizada em detrimento das vítimas não observou os requisitos do direito interno previstos em tal diploma legal (eis os vícios: ilegitimidade da polícia militar para requerer, ausência de fundamentação na decisão, falta de notificação do MP e ausência de transcrição das fitas), houve violação do Pacto de São José da Costa Rica.

Entendeu-se igualmente que a persecução penal ilegítima violou o princípio da liberdade de associação. Da mesma forma, foi considerada ilegítima, por falta de fundamentação,a decisão em sede administrativa relativa à conduta funcional da juíza que autorizou a interceptação telefônica.”

Ao final, ordenou-se ao Brasil a obrigação de indenizar Arlei J. Escher, Dalton L. de Vargas, Delfino J. Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni. Fixou-se também a obrigação de divulgar a sentença e de investigar os fatos relacionados ao caso.


Caso Apitz Barbera y otros (“Corte Primera de lo Contencioso Administrativo”) vs.Venezuela

2 de julho de 2013

O caso Apitz Barbera y otros vs.Venezuela releva um importante precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual se debateu amplamente o princípio da independência do Poder Judiciário. O pano de fundo diz respeito ao polêmico regime jurídico constitucional bolivariano, o qual tem sido constantemente acusado de agir em desconformidade com o princípio da separação dos poderes.

O caso perante à República Bolivariana da Venezuela

María Ruggeri Cova, Perkins Rocha Contreras e Juan Carlos Apitz Barbera eram juízes da Corte Primera de lo Contencioso Administrativo, na Venezuela. A jurisdição de tal órgão diz respeito ao controle de atos do poder administrativo público, com exceção daqueles que emanam do Presidente da República e seus Ministros. As sentenças da Corte Primeira são passíveis de recurso apenas ao Supremo Tribunal.

A nomeação dos citados magistrados deu-se em caráter provisório no dia 12 de setembro de 2000, mediante ato do Plenário do Supremo Tribunal, que fixou como condição resolutiva a realização de concurso.

Ocorre que, em junho de 2002, os juízes da Primeira Corte do Contencioso Administrativo, ao julgar cautelar de amparo, emitiram sentença invalidando ato administrativo emitido pelo “Registrador Subalterno del Primer Circuito de Registro Público” do Município de Baruta, o qual se negara a registrar uma propriedade. A sentença teria sido altamente criticada pelos altos escalões do Governo.

Em razão dessa sentença, os magistrados passaram por investigação na Inspetoria Geral dos Tribunais – IGT pelo cometimento de suposto “erro inescusável”. Ao final, foram denunciados ao CFRSJ, que é um órgão  judicial criado provisoriamente pela Assembléia Constituinte para proceder ao exame da disciplina dos juízes, enquanto não forem instalados os Tribunais Disciplinares previstos na Constituição Bolivariana da Venezuela, de 15 de dezembro de 1999.

Na denúncia, os juízes foram acusados de ter cometido “erro judicial inescusável”. Em 30 de outubro de 2003, com base nesse fundamento, foi decretada a destituição. Inconformados, recorreram administrativamente e apresentaram pedido de amparo junto ao contencioso administrativo, o qual acabou sendo rejeitado. O recurso administrativo não foi julgado.

O caso perante o Sistema Interamericano de Direito Humanos

A destituição dos magistrados foi objeto de queixa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, por sua vez, demandou a República Bolivariana da Venezuela na Corte Interamericana, imputando-lhe violação aos direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana.

Ao apreciar a demanda, a CIDH assentou que a independência dos juízes deve ser garantida pelo Estado, tanto em seu aspecto institucional, isto é, em relação ao sistema judicial como um todo, e também em relação à pessoa do juiz específico. O objetivo da proteção é evitar que o sistema judicial, em geral, e seus membros, em particular, sejam submetidos a restrições indevidas no exercício de suas funções por parte de órgãos estranhos ao Poder Judicial ou mesmo por parte dos magistrados de tribunais superiores. No caso concreto, entendeu-se que punir magistrados por atos no exercício da jurisdição constitui atentado à independência funcional.

Ademais, observou-se que a CFRSJ não é um órgão dotado de imparcialidade, pois seus membros poderiam ser livremente exonerados pela Suprema Corte. Inclusive, as exceções de impedimento opostas pelos juízes sindicados não foram respondidas. Por fim, concluiu-se que a destituição não foi devidamente fundamentada, pois a decisão teve teor meramente remissivo. Segundo a CIDH, a argumentação da sentença deve mostrar que foram devidamente apreciadas as alegações das partes as provas dos autos, permitindo a possibilidade de crítica e recurso.

Ao final, em sentença de 05 de agosto de 2008, a Venezuela foi condenada a pagar indenização às vítimas e reintegrá-las ao Poder Judiciário, com direito aos salários, benefícios sociais e classificação equivalentes àqueles que corresponderiam ao dia de hoje, se não tivessem sido demitidos.


O caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile (2012)

1 de julho de 2013

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A finalidade deste post é tratar de recente julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o qual versa sobre orientação sexual e direito de guarda de crianças. Juridicamente, o pano de fundo da controvérsia aborda a responsabilidade internacional do Estado por tratamento discriminatório e interferência arbitrária na vida privada e familiar. É o caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, julgado em 2012, o qual representa um julgado riquíssimo.

O processo judicial perante o Poder Judiciário do Chile

 Karen Atala Riffo e Ricardo Jaime López Allendes casaram-se em 29 de março de 1993. Dessa relação, vieram à luz as meninas M., V. e R., nascidas, respectivamente, em 1994, 1998 e 1999. Em 2002, os consortes separam-se de fato, sendo estabelecido o acordo no sentido de que a senhora Atala ficaria com a custódia e cuidados das três meninas na cidade Villarrica, com regime de visita semanal a casa do pai em Temuco.

Ocorre que Atala Riffo iniciou relação homoafetiva com Emma de Ramón. Em novembro de 2002, elas passaram a morar juntas na casa de Atala. Inconformado com essa situação, o pai das meninas ingressou com demanda de custódia no Juizado de Menores de Villarrica, alegando que, por conta do lesbianismo materno, o ambiente familiar se tornara prejudicial ao desenvolvimento emocional das crianças.

Em 2 de maio de 2003, o juizado concedeu a custódia provisória ao pai, regulando as visitas maternas. Contudo, na sentença, que fora proferida por outro juiz, julgou-se improcedente o pedido, sob o fundamento de que a homossexualidade não é doença e que a orientação sexual da ré não representa impedimento para desenvolver a maternidade responsável.

Inconformado, em novembro de 2003, o pai de das meninas interpôs recurso de apelação, alegando que a sentença promoveu uma mudança radical na vida das menores. A Corte de Apelações de Temuco, em 30 de março de 2004, confirmou a sentença por seus próprios fundamentos.

Então, o pai das meninas interpôs queixa junto à Suprema Corte de Justiça do Chile. Ao apreciar o pedido, a quarta turma do órgão judicial máximo chileno proveu, em 31 de maio de 2004, o recurso para dar a custódia definitiva ao recorrente. Assentou o tribunal que a regra segundo a qual os filhos devem ficar sob a guarda da mãe não é absoluta, comportando relativização no caso concreto. Por isso, considerando o fato de que a orientação sexual materna poderia expor as filhas à discriminação e lhes causar confusão psicológica, a melhor solução seria mantê-las sob os cuidados paternos, no âmbito de uma família tradicional.

O processo perante o Sistema Interamericano

Ao julgar o caso,  a Corte entendeu que a decisão da justiça chilena violou diversas normas do Pacto de São José da Costa Rica.

De início, constatou-se que foram transgredidos os princípios da igualdade e da não discriminação previstos no artigo 1.1 do Pacto de São José da Costa Rica, os quais, por conta da expressão “outra condição social”, protegem a orientação sexual e a identidade de gênero. Nessa senda, a corte internacional assentou que a presunção de tratamento social discriminatório não poderia ser utilizada como fundamento para a restrição de direitos. Se a sociedade é intolerante, não cabe ao Estado sê-lo, razão por que só lhe resta adotar medidas para combater o preconceito em razão da orientação sexual.

Quanto à presunção de dano psicológico às crianças, entendeu a CIDH que a Suprema Corte chilena adotou uma análise in abstracto do suposto impacto da orientação sexual da mãe no desenvolvimento das meninas, não tendo sido apresentadas provas concretas de dano real e imediato. Por fim, entendeu-se que o Pacto de São José da Costa Rica não adota um conceito fechado e tradicional de família fundada no matrimônio. Inclusive, rechaçaram-se excertos da sentença da Suprema Corte do Chile, os quais estariam a albergar um conceito limitado e estereotipado de família (“família estruturada normalmente e respeitada na sociedade”).

Outro princípio fundamental vulnerado pela decisão judicial chilena foi o da proteção da vida privada dos indivíduos (art. 11 do Pacto). O tribunal internacional observou que a vida privada é um conceito amplo que não pode ser definido de forma exaustiva. Seu âmbito de proteção inclui a vida sexual e o direito de estabelecer e desenvolver relações com outros seres humanos.

Também não passou desapercebida pela corte uma violação às garantias processuais. Com efeito, na visão da CIDH, a sentença da Corte Suprema de Justiça não deu às crianças o direito de serem ouvidas consagrado no artigo 8.1, combinado com  os artigos 19 e 1.1 da Convenção Americana.

Na conclusão da sentença, a Corte Interamericana não agiu como quarta instância a fim de reformar a decisão da justiça chilena. A sentença foi puramente reparatória, estabelecendo um conjunto de obrigações a serem cumpridas pelo Chile: i) prestar assistência médica e acesso psicológico ou psiquiátrico e imediata, adequada e eficaz, através de suas instituições especializadas públicas de saúde às vítimas que o solicitem; ii) publicar o resumo do julgamento, por uma vez, no Diário Oficial e em jornal de circulação nacional, divulgando o inteiro teor no site oficial; iii) realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional para os fatos do presente caso; iv) continuar a implementar, dentro de um prazo razoável, programas permanentes e cursos de educação e formação para os funcionários públicos regionais e nacional e, particularmente, para servidores de todas as áreas e escalões do Judiciário; v) pagar determinadas quantias a título de compensação por danos materiais e morais e reembolso de custos e despesas, conforme o caso.


Direito à saúde: a obrigação do Poder Público em fornecer medicamentos

21 de fevereiro de 2012

Na Constituição Federal de 1988, o direito fundamental à saúde recebe destaque especial em diversas passagens.

No art. 6º da CF, esse direito é elencado no rol de direitos fundamentais sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Por sua vez, no Capítulo II do Título “Da Ordem Social” (arts. 196 a 200), esse direito fundamental social recebe uma solene aclamação: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Não poderia ser diferente essa primazia normativa dada ao direito à saúde, afinal, um dos fundamentos da Constituição Federal de 1988 é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), o qual possui, como um de seus desdobramentos jurídicos, o mínimo existencial. Em termos sucintos, o mínimo existencial compreende o conjunto de bens elementares à vida digna do ser humano, tais como saúde pública, habitação, alimentação e educação básica.

Sob o aspecto estrutural, o direito fundamental à saúde apresenta dupla dimensão. Uma de caráter positivo, que diz respeito ao direito público subjetivo em receber serviços médicos em hospitais e postos de saúde bem equipados e com leitos em número adequado, o que exige, por outro lado, profissionais de saúde capacitados e medicamentos suficientes. A outra dimensão desse direito tem caráter negativa, ou seja, é um “direito de defesa” contra qualquer agressão de terceiros (incluído o próprio Estado) à saúde do particular.

No amplo espectro das prestações positivas relacionadas ao direito à saúde, deve ser destacado o fornecimento de medicamentos aos que deles necessitam.

Em diversos precedentes, o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado esse direito fundamental à obtenção de medicamentos. De fato, há uma nítida tendência de permitir-se a concretização judicial dos direitos sociais relacionados ao mínimo existêncial.

Nesse contexto, deve ser feita referência às Suspensões de Tutela Antecipada n.º 175 e 178, julgadas recentemente pelo Plenário do STF. Nesses casos, houve a fixação de parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Esse processo foi, sobremaneira, enriquecido em razão de Audiência Pública sobre o Sistema Único de Saúde – SUS e a Judicialização do direito à saúde. Nesses julgados, importantes entendimentos foram fixados. Vejamos os principais:

a) foi reafirmada pelo STF a responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Logo, tanto a União como Estado e Município podem ser réus em ação que envolva a efetivação do direito à saúde. Assim, é de incumbência de todos os entes federativos, sem distinção, o fornecimento ou o custeio dos medicamentos necessários à preservação da saúde e da vida dos cidadãos, ainda que o remédio não conste nas listas organizadas pelo Ministério da Saúde.

b) foi estabelecida a necessidade de se observar se a política pública adotada pelo SUS é eficiente. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, “pode-se concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento da opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.”

c) foi determinado que “o alto preço do medicamento não é, por si só, motivo para o seu não fornecimento, visto que a Política de Dispensação de Medicamentos excepcionais visa a contemplar justamente o acesso da população acometida por enfermidades raras aos tratamentos disponíveis.”


Direito de vista e recurso nas provas do ENEM

11 de fevereiro de 2012

Nos últimos meses, o Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM foi objeto de uma série de questionamentos judiciais em relação ao procedimento inquisitorial por ele utilizado na correção das provas, em especial, da redação.

De fato, segundo o art. 20 da Portaria n.º 109, de 27 de maio de 2009, no âmbito do ENEM, não é possível a interposição de recursos ou a vista de provas. Diz a parte final da referida disposição normativa: “O exame é de caráter voluntário, de abrangência nacional e em decorrência da complexidade da sua logística inviabilizam a analise de recursos e de vistas de provas.”

Embora o ENEM seja um exame voluntário, é evidente que deve obedecer aos princípios que regulam qualquer certame da Administração Pública, semelhante ao que ocorre com os vestibulares e os concursos públicos.  De fato, atualmente, o ENEM não é mais um mero exame de qualidade do ensino médio, mas um instrumento de ingresso nas cobiçadas vagas da graduação das universidades federais e no PROUNI, o que mostra um novo perfil finalístico e procedimental, a exigir uma clara sintonia com o princípio do devido processo legal.

Assim, os organizadores do ENEM (no caso, a autarquia federal INEP) também estão obrigados à observância dos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da publicidade, desdobrando-se este último no poder conferido aos cidadãos de ter acesso às informações de interesse pessoal existentes em órgãos públicos (art. 5º, incisos XXXIII).

Ora, a toda evidência, art. 20 da Portaria n.º 109, de 27 de maio de 2009, não pode subverter a ordem jurídica, aniquilando os direitos fundamentais à informação e ao contraditório de que gozam aos participantes do ENEM.

Felizmente, embora muitos juízes não sigam este entendimento, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região possuem diversos precedentes acerca do direito de vista ao caderno de resposta e à avaliação dos examinadores:

 “Tendo em vista a necessária observância aos princípios norteadores de toda atividade administrativa, mormente os da publicidade – que se desdobra no direito de acesso a informação perante os órgãos públicos –, da ampla defesa e do contraditório, o candidato em concurso público deve ter acesso à prova realizada com a indicação dos erros cometidos que culminaram no seu alijamento do certame”. (STJ)

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. VESTIBULAR. CANDIDATO REPROVADO NA PROVA DE REDAÇÃO. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. PROIBIÇÃO VISTA DA PROVA. ILEGALIDADE. I – Constitui garantia do Estado Democrático de Direito o controle de legalidade e legitimidade dos atos da Administração Pública. O direito de petição aos poderes públicos instrumentaliza essa garantia, cabendo à Autoridade Pública tornar viável o acesso a informações necessárias ao seu exercício. II – O concurso público deve desenvolver-se com obediência ao princípio da publicidade (art. 37 da Constituição), garantindo-se ao candidato participante o direito ao fornecimento de certidões, esclarecimento de situações de seu interesse pessoal e obtenção de cópias de suas provas e demais elementos do certame, para defesa de direitos, ainda quando já não seja possível sua aprovação. III – Conhecendo-se a ilegalidade da exclusão do candidato do concurso vestibular, por lhe haver sido conferida nota zero na prova de redação, sem fundamentação e sem direito à vista, deve a segurança ser concedida, possibilitando ao candidato direito de vista e recurso, caso queira, da referida prova. (AMS 1999.01.00.113336-6/DF, Rel. Desembargadora Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues, Sexta Turma, DJ de 16/08/2002, p.183). IV – Remessa desprovida. (TRF-1)

CONSTITUCIONAL. AÇÃO CAUTELAR. ENSINO SUPERIOR. VESTIBULAR. ACESSO A PROVA DE REDAÇÃO. CF, ART. 5º, XXXIII. POSSIBILIDADE. 1. Correta a decisão em que se assegurou acesso da autora à prova de redação, indispensável ao exercício do direito à revisão da menção que lhe foi atribuída. Precedentes. 2. Apelação e remessa oficial, tida por interposta, a que se nega provimento. (TRF-1)

 Na prática, ao se proibir o candidato de postular a revisão de sua nota, o INEP ratifica possíveis erros graves e inviabiliza por completo o acesso de muitos cidadãos ao ensino superior, aniquilando a esperança de cursar uma universidade, de exercer a profissão que sonha e de alcançar melhores condições existenciais para seu grupo familiar. Por isso, é essencial que os juízes federais tenham uma postura crítica em relação aos procedimentos atualmente empregados no ENEM


Marcha da maconha e uniões homoafetivas: ativismo judicial ou justiça ativa?

1 de julho de 2011

Recentemente, duas decisões do STF causaram perplexidade nos setores conservadores da sociedade. Estamos falando da liberalização da chamada “marcha da maconha” (ADPF 187) e do reconhecimento dos direitos civis derivados das uniões homoafetivas (ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ).

 As igrejas evangélicas e os católicos em geral acusaram a Suprema Corte de degradar os valores fundamentais da família cristã. Por sua vez, inúmeros constitucionalistas de nomeada alegaram que o STF promoveu o ativismo judicial.

 Em si, o ativismo judicial, quase sempre, é algo negativo. Segundo Inocêncio Mártires Coelho, o ativismo ocorre quando o exercício da função jurisdicional extrapola os limites impostos pelo próprio ordenamento jurídico. Seria uma espécie de arbitrariedade ou ditadura dos juízes. Não cremos que aqueles dois julgados concretizaram algo do gênero.

 Atualmente, a jurisdição constitucional envolve concretização e não a interpretação pura e simples. Mais uma vez, citemos o magistério de Mártires Coelho, para quem “a lei não esgota o Direito, antes exige, quando necessário, concretizá-lo para além do sentido literal dos enunciados normativos”. Assim, “a função do juiz não se resumirá a dizer um direito previamente posto e sobreposto, e tampouco a servir de mero porta-voz do legislador, como preconizava Montesquieu, que reduzia o juiz à condição de boca que pronuncia as palavras da lei, e a função de julgar, a uma espécie de prerrogativa de certo modo nula.”

 Em seu voto no julgamento da ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ, o Ministro Celso de Mello defendeu um papel institucional pró-ativo do STF, porém não arbitrário, ao reconhecer os efeitos jurídicos das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Nesse caso, houve uma típica atuação positiva da Suprema Corte, promovendo a criação judicial do Direito. Contudo, o exercício dessa atividade deu-se nos limites da Lei Maior:

 “Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência de eventual ativismo judicial exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de  que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples omissão dos poderes públicos”.
Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República. Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.” (Informativo 631)


O controle difuso nos tribunais: análise da reserva de plenário (art. 97 da CF)

19 de junho de 2011

1. A cláusula da reserva de plenário. Na estrutura judiciária brasileira, os tribunais, em regra, são divididos em órgãos fracionários menores, denominados “seções”, “câmaras” ou “turmas”. Ao julgar uma causa  originária ou recursal,  o órgão fracionário menor não pode, mesmo entendendo que uma lei viola a constituição,  declará-la inconstitucional e seguir no julgamento do feito. Nos termos do art. 97 da Constituição, somente o plenário ou a corte especial do tribunal (órgãos fracionários maiores), pelo voto da maioria absoluta de seus membros, pode declarar inconstitucional lei ou ato normativo. Trata-se da “cláusula da reserva de plenário”.

2. O incidente de inconstitucionalidade. Tecnicamente, a declaração de inconstitucionalidade de norma pelos tribunais, no controle difuso, deve se dar por meio do incidente de inconstitucionalidade. O procedimento desse incidente é regido pelos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil:

a) Em qualquer tribunal, o incidente pode ser suscitado pelas partes, pelo Ministério Público e pelos próprios membros da turma ou câmara.

b) Diante da questão constitucional suscitada, órgão fracionário menor deve decidir se admite ou não o incidente, verificando se a argüição de inconstitucionalidade reveste-se de plausibilidade. Se o incidente é infundado, por ser a lei constitucional, segue-se no julgamento da causa, aplicando-se o direito à espécie. Se for reconhecido que a argüição de inconstitucionalidade é plausível, o órgão francionário menor lavrará acórdão  admitindo o incidente e encaminhará o tema para a apreciação do órgão fracionário maior.

c) No âmbito do Plenário ou Corte Especial, será apreciada, mediante voto da maioria absoluta dos membros do colegiado, a compatibilidade da norma em face do ordenamento constitucional (art. 481 do CPC). Em face da decisão do órgão fracionário maior acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma não cabe recurso extraordinário ou (Súmula 513 do STF).

d) Após o julgamento do incidente, o órgão fracionário menor voltará a examinar a causa, sendo obrigado a seguir o entendimento fixado pelo pleno ou pelo órgão especial, no sentido da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma. Da decisão da câmara ou turma que completa o julgamento da causa cabe recurso extraordinário, devendo a parte sucumbente juntar ao recurso a cópia da decisão do incidente.

3. Exceções à reserva de Plenário. Em algumas situações, o órgão fracionário menor poderá exercer atividades típicas da jurisdição constitucional, emitindo juízos sobre a compatibilidade ou não de uma lei em face da constituição, independentemente de remessa do tema ao plenário do Tribunal. Vejamos:

a) Normas anteriores à constituição: nesse caso, o órgão fracionário  menor declarará que a lei ou ato normativo foram revogados ou não recepcionados pela nova ordem constitucional.

b) Interpretação conforme a constituição: nessa situação, há o reconhecimento de que a lei é constitucional, desde que interpretada em certo sentido que a compatibilize com a Carta Magna.

c) Existência de pronunciamento do plenário ou da corte especial do tribunal, bem como do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão (art. 481, parágrafo único, do CPC).

 4. Súmula vinculante nº 10. Acerca do sentido do art. 97 da Constituição, foi editada pelo STF a súmula vinculante nº10, segundo a qual “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”

Em muitos casos, certas regras legais são plenamente aplicáveis a um caso concreto; porém, certas turmas ou câmaras de tribunais deixam de aplicá-las e fazem incidir diretamente um comando constitucional. Como bem ressaltou o Ministro Eros Grau em recente julgado “afastar a aplicação de um ato normativo equivale a declarar sua inconstitucionalidade, devendo, pois, ser observado o preceito da reserva de plenário [CB/88, artigo 97]”. [2] No leading case que embasa a súmula, o STF deixou claro que “reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que – embora sem o explicitar – afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição.”[3]


[1] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2009, p. 250.

[2] STF, RE 595018 AgR, Relator:  Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 15/09/2009, DJe-191.

[3] STF, RE 240096, Relator:  Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 30/03/1999, DJ 21-05-1999, p. 33.


Leis estaduais que versam sobre preços de estacionamentos: crítica à jurisprudência do STF

1 de maio de 2011

Em diversos lugares, a cobrança de tarifas pelo uso do estacionamento de shopping centers ou supermercados causa revolta.  Muitos consumidores questionam a legitimidade dos valores exigidos por esses estabelecimentos, reputando-os excessivos. Em alguns Municípios e Estados, leis foram elaboradas para vedar ou limitar essa lucrativa cobrança.

O que poucos sabem é que, nos termos da jurisprudência pacífica do STF, é formalmente inconstitucional lei estadual que proíba a cobrança de valores pela utilização de estacionamento em local privado, seja ele uma loja de departamentos, um supermercado ou um shopping.

Para a Suprema Corte, tais leis violam a regra de competência de acordo com a qual cabe a União legislar sobre Direito Civil (art. 22, I, da Constituição Federal). Assim, assiste aos empresários a faculdade de explorar os estacionamentos como melhor lhes aprouver, pois se trata do exercício do direito de propriedade. Nesse sentido, o seguinte julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. ESTACIONAMENTO EM LOCAIS PRIVADOS. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AO ART. 22, I DA CONSTITUIÇÃO. Esta Corte, em diversas ocasiões, firmou entendimento no sentido de que invade a competência da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I da CF/88) a norma estadual que veda a cobrança de qualquer quantia ao usuário pela utilização de estabelecimento em local privado (ADI 1.918, rel. min. Maurício Corrêa; ADI 2.448, rel. Min. Sydney Sanches; ADI 1.472, rel. min. Ilmar Galvão).
Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (STF, ADI n. 1.623-RJ, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Informativo 623/2011)

 Pensamos que esse posicionamento merece críticas. É certo que cabe à União a competência privativa para legislar sobre Direito Civil. Contudo, no art. 24, incisos I e  VIII, da Constituição, confere-se competência concorrente para a União e os Estados legislarem sobre matérias como Direito Econômico e defesa do consumidor. Ora, a regulação da cobrança de valores pelo uso de estacionamento poderia ser enquadrada como legítimo exercício da competência suplementar dos Estados em Direito Econômico, na condição de limitação à propriedade.

Em grande parte, o modelo federal de perfil centralizar que vivemos sob o manto da Constituição Federal de 1988 deve-se a interpretações conservadoras da Suprema Corte.


A competência concorrente no Estado federal brasileiro

13 de março de 2011

I – O Estado Federal

Em relação à forma de Estado, a Constituição de 1988 declara, em seu art. 1º, que o Brasil é uma república federativa, constituída pela união indissolúvel de Estados e Municípios e do Distrito Federal. Vivemos, portanto, sob o manto de um Estado federal.

Nesse tipo de Estado, sobre uma mesma população e um mesmo território, manifestam-se diferentes núcleos de poder. Da União emanam normas cuja eficácia, em regra, atinge toda a coletividade estatal; dos Estados surgem normas de caráter regional ou microrregional, restritas ao âmbito de seus respectivos territórios. Finalmente, da esfera municipal surgem normas de caráter local, voltadas à regulação de assuntos de seu peculiar interesse.

Classicamente, os Estados federais surgem a partir do momento em que Estados independentes abdicam da soberania, optando por constituir um único Estado.  Vale dizer: os antigos Estados soberanos despem-se dessa condição, passando a ser coletividades autônomas, unidas sob o manto de uma Constituição. Exemplo mais notável desse processo de formação de Estado Federal é o dos Estados Unidos da América. Como resultado, surge um federalismo centrífugo, no qual há uma maior autonomia financeira e legislativa dos Estados.

No Brasil, a federação surge a partir de um processo de descentralização  política ocorrido com a queda da monarquia em 15 de novembro 1889. O antigo Estado unitário cedeu espaço para um Estado federal, surgindo um federalismo centrípeto, no qual há uma forte preponderância da União em detrimento dos Estados.

Deve ser registrado que soberano é o próprio Estado federal;  os Estados membros são apenas autônomos. Segundo Celso Ribeiro Bastos: “a soberania é um poder que não encontra outro acima dela na arena internacional e nenhum outro que lhe esteja nem mesmo em nível igual na ordem interna”[1] Por sua vez, a autonomia é uma capacidade de autodeterminação, limitada pela Constituição.

II – A repartição de competências

Para que o Estado Federal possua coesão e harmonia interna, é essencial que a Constituição preveja um adequado sistema de repartição de competências. Na Constituição brasileira de 1988, a repartição de competência fundamenta-se nas seguintes técnicas:

a) enumeração, de forma expressa, das competências legislativas e materiais da União (artigos 22 e 23);

b) enumeração, de forma indicativa, das competências legislativas municipais (art. 30, incisos I e II) e de forma expressa das competências materiais das comunas (art. 30, incisos III a IX);

c) fixação, de forma residual ou remanescente, da competência legislativa e material dos Estados (art. 25, § 1º, da CF), sendo que, em alguns casos, há a previsão de competências exclusivas expressa (art. 25, § § 2º e 3º, da CF).

Na Constituição, também se verificam áreas de atuação comum ou paralela entre a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios e setores de atuação concorrente entre a União e os Estados.

III – A competência concorrente

Na competência concorrente, cabe à União a edição de normas gerais (art. 24, § 1º) e aos Estados e ao Distrito Federal a elaboração de normas suplementares (art. 24, § 2º).

As normas gerais da União são aquelas que fixam os postulados fundamentais, necessários à uniformidade do tratamento da matéria no âmbito da federação. Trata-se, portanto, de “normas não exaustivas, leis-quadro princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores.”[2]

As normas suplementares dos Estados podem ser de dois tipos: a) Normas gerais editadas nas situações em que a União se omite em tratar assuntos de competência concorrente (art. 24, § 3º), caso em que temos a competência concorrente supletiva; b) Normas específicas, cuja finalidade é tratar de detalhes e minúcias, referentes ao peculiar interesse dos Estados, situação em que se manifesta competência concorrente complementar.

Nos termos do art. 24, § 4º, da CF, a superveniência de lei da União contendo normas gerais implica na suspensão da eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Observe-se que a Constituição menciona “suspensão de eficácia” e não o termo clássico “revogação”. Não se trata de uma falha de redação, mas uma expressão com alto sentido técnico.  Com efeito, após a superveniência de lei federal, a lei estadual tem sua eficácia suspensa, o que se dá independentemente de manifestação expressa da União. Por conseguinte, ocorrendo a revogação da lei federal superveniente, a lei estadual voltará a ter eficácia automaticamente, pois ela não estava revogada, mas meramente suspensa.

IV – As tendências centralizadoras da União

Em matéria de competência concorrente, o que se tem verificado, na prática, é que a União, muitas vezes com o beneplácito do Poder Judiciário, quase sempre extrapola os limites da atividade de edição de normas gerais. Essa deformação do sistema federal brasileiro é descrita por Celso Ribeiro Bastos, nestes termos:

“A experiência já havida sobre uma legislação de normas gerais tem mostrado que a concepção que faz a União de que sejam normas geras é bastante ampla. Então, hoje, temos normas gerais de direito tributário, normas gerais de educação, e todas essas leis são bastante amplas, a ponto de tolherem quase que por completo a atuação livre dos Estados”.[3]


REFERÊNCIAS

[1] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 292.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.820.

[3] BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 308.


O direito de obter certidões de aprovação em concursos públicos

27 de fevereiro de 2011

As pessoas que militam na área dos concursos públicos, sejam os candidatos ou seus procuradores, se deparam com muitas dificuldades. Uma delas ocorre frequentemente nas provas de títulos. Nessa fase decisiva para uma boa classificação, muitos problemas ocorrem para se conseguir obter os respectivos documentos comprobatórios.

Tradicionalmente, as bancas examinadoras consideram como título a aprovação em concurso público, desde que seja apresentada certidão hábil, expedida por setor de pessoal do órgão ou certificado do órgão executor do certame, da qual constem a natureza das provas do concurso, as notas obtidas, a aprovação e a classificação.

Ocorre que muitos órgãos públicos se recusam a fornecer certidões sobre concursos ocorridos no passado. Em geral, os servidores da área de recursos humanos se baseiam em cláusulas proibitivas de editais antigos que previam algo do tipo: “Não serão fornecidos atestados, certificados ou certidões relativos à habilitação, classificação, ou nota de candidatos, valendo para tal fim a publicação do resultado final e homologação em órgão de divulgação oficial.”

Nesses casos, os aprovados se vêem em uma situação difícil. Contudo, é um direito fundamental previsto no art. 5º, XXXIV, “b”, da Constituição Federal, a possibilidade de exigir certidões dos poderes públicos: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”. Na jurisprudência, inúmeras decisões amparam os candidatos com base nessa disposição constitucional:

“I – Afigura-se inconstitucional e abusiva a recusa de expedição de certidão de aprovação em concurso público, por contrariar o disposto no art. 5º, XXXIV, b, da nossa Carta Magna. II – Nas ações de mandado de segurança não há espaço para a condenação em verba honorária, em homenagem ao enunciado da Súmula nº 512/STF. III – Remessa oficial parcialmente provida. Sentença confirmada.”
(TRF 1ª Região, REO 9401180024, Desembargador federal Souza Prudente, Sexta Turma, 01/08/2003)

“A Administração Pública não pode negar ao candidato aprovado em concurso público certidão para fins de prova de título, sob pena de infringir direito assegurado no art. 5º, XXXIV, b, da Carta Magna. -Apelação e remessa oficial improvidas.
(TRF 1ª Região, AMS 9601051015, Juiz Julier Sebastião Da Silva (Conv.), Terceira Turma Suplementar, 01/10/2001)”

Portanto, urge que os editais parem de colocar cláusulas proibitivas da emissão de certidão, pois tal postura administrativa representa uma ofensa a Constituição Federal.


Origens do controle de constitucionalidade: o caso Marbury v. Madison

5 de fevereiro de 2011

Nos Estados Unidos, a Constituição sempre foi considerada uma lei suprema. Assim, diferentemente da França e dos demais países europeus, a nação norte norte-americana viveu, desde a sua formação, o princípio da constitucionalidade, segundo o qual “[…] as leis e outros atos do Estado devem ser conformes à Constituição e não devem ser aplicados pelos tribunais no caso de serem desconformes”.

Embora hoje pareça banal a idéia de que ao Poder Judiciário cabe a missão fundamental de controlar a constitucionalidade das leis, nos séculos XVIII e XIX, essa concepção era inovadora e revolucionária.

Foi exatamente por força de construção doutrinária e jurisprudencial que os magistrados americanos, de forma pioneira, passaram a ter o poder ímpar de acessar a Constituição declarando a nulidade de leis a ela contrárias (judicial review of legislation).” Assim, essa competência dos tribunais não decorre de preceito expresso, mas da própria concepção de supremacia constitucional.

Segundo Rui Barbosa, em decisão de 1795, o juiz Paterson, no Estado da Filadélfia, declarou a inconstitucionalidade de lei federal, assentando que: “A Constituição é a Lei Suprema; sua dignidade prevalece à da legislatura; só a autoridade que a fez poderá mudá-la; o Poder Legislativo é criatura da Constituição; deve à Constituição seu existir; recebe os seus poderes da Constituição; e, pois, se os atos dele não se conformarem a ela, são nulos”.

Contudo, é o famoso caso Marbury v. Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte, o marco da criação do controle de constitucionalidade das leis. Eis a síntese desse célebre litígio: nas vésperas do final de seu mandato, o Presidente John Adams nomeou vários correligionários, entre os quais o William Marbury, para ocuparem cargos estratégicos no judiciário federal. Ao assumir o poder, o novo Presidente Thomas Jefferson ordenou ao Secretário James Madison que não concedesse a posse aos beneficiários. Inconformado, Marbury, com base em Lei de Judiciária de 1789 que outorgava à Suprema Corte o poder de conceder mandados, impetrou ação, postulando a posse no cargo de juiz.

Ao analisar o caso, o Supremo Tribunal negou o pedido, sob a justificativa de que a citada lei é inconstitucional, por criar uma competência não prevista na Constituição Federal.

Graças ao controle de constitucionalidade, a rigidez da Constituição de 1787 tem sido atenuada, possibilitando a adaptação de seu texto aos novos tempos. Assim, com mais de duzentos anos de existência e tendo sofrido apenas vinte e sete emendas, a Constituição americana é ainda uma referência jurídica no estudo do Direito Constitucional.


Hermenêutica, interpretação e concretização da Constituição

8 de janeiro de 2011

A Hermenêutica jurídica é ramo da Teoria da Geral do Direito, voltado ao estudo e desenvolvimento dos métodos e princípios da atividade de interpretação. A finalidade da Hermenêutica, enquanto domínio teórico, é proporcionar bases racionais e seguras para um interpretação dos enunciados normativos. Por sua vez, a Hermenêutica Constitucional é um desdobramento da Hermenêutica Jurídica: trata-se da ciência cujo objeto é a interpretação e concretização das constituições.

Etimologicamente, o vocábulo hermenêutica é oriundo de Hermes. Na Grécia antiga, Hermes era um personagem mítico que, por sua capacidade de compreender e revelar, intermediava a mensagem dos deuses aos homens.[1] Na apresentação da obra Hermenêutica Constitucional (On reading the Constitution, de Lourence Tribe e Michael Dorf), Lênio Luiz Streck teceu os seguintes comentários sobre a origem do termo “hermenêutica”:

“A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados ao longo da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a idéia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite e, portanto, esclarece, o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexibilidade do problema hermenêutica. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes determinados sentido”.[2]

Inicialmente, a hermenêutica teve como finalidade desvendar o sentido das mensagens bíblicas, sendo certo que os intérpretes das sagradas escrituras divergiam entre si sobre a melhor maneira de interpretá-la: de modo literal, moral, alegórico ou místico.[3] Posteriormente, a hermenêutica passa ao âmbito jurídico enquanto disciplina da Teoria do Direito.

O objeto da hermenêutica é a interpretação. No sentido clássico, interpretar é atribuir o sentido e o alcance de um enunciado normativo. Assim, interpretar um texto legal ou constitucional equivale a revelar, no contexto da resolução de um problema, o sentido da norma jurídica.

A interpretação constitucional, porém, vai além da simples compreensão de um significado prévio existente no texto constitucional, eis que envolve a atividade de concretização, a qual se traduz no processo de densificação de regras e princípios, por meio da complementação e preenchimento de espaços normativos, com a finalidade de se oferecer uma solução ao caso concreto.[5] Luís Roberto Barroso denomina essa atividade criadora de construção, diferenciando-a da interpretação nestes termos: “[…] a construção significa tirar conclusões que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São as conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma”.[6]

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, p. 270 (nota de rodapé).

[2] STRECK, Lênio Luiz. Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta. In: TRIBE, Laurence e DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Trad. Almarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. xiii e xiv.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, p. 270.

[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição , p. 1184.

[5] Idem, p. 1185.

[6] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, p. 271.


O valor do preâmbulo nas constituições

28 de dezembro de 2010

Nas constituições escritas, o preâmbulo é uma declaração solene que “atesta a origem do poder constituinte, seu fundamento, seus objetivos e a essência do pensamento que orientou os trabalhos da assembléia.”[1] Segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho, o preâmbulo “é, um só tempo, uma certidão de origem e uma declaração de princípios”.[2]

Apesar de conter uma breve explanação, o preâmbulo reflete toda uma conjuntura histórica, sendo a síntese das idéias predominantes no processo constituinte. Em geral, suas disposições descrevem a legitimidade do poder constituinte, exaltam certos valores e fixam finalidades a serem perseguidas.

No Brasil, todas as leis fundamentais apresentaram um preâmbulo, o qual faz parte de nossa tradição constitucional. Nesse contexto, o caráter político e ideológico dos preâmbulos é inquestionável. A questão controvertida consiste em saber se as disposições preambulares possuem força normativa.

Na doutrina, predomina o entendimento de que as disposições preambulares não ostetam a natureza de normas jurídicas. Assim, o preâmbulo não é capaz de produzir direitos e deveres ou invalidar atos que lhe sejam contrários.  Contudo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante. Para Vital Moreira e Canotilho, o valor dos preâmbulos é subordinado, funcionado como elementos de interpretação e, eventualmente, de integração das normas constitucionais.[3]

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, esse entendimento tem sido expressamente adotado. Com efeito, na ADI 2076, a Suprema Corte deixou claro que o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 não tem força normativa. Assim, julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade por omissão movida em face do preâmbulo Constituição do Acre, a qual, diferentemente da Constituição Federal, não se reportou “a proteção de Deus”. Portanto, não há qualquer obrigatoriedade de as constituições estaduais se reportarem à proteção divina ou qualquer outra passagem do preâmbulo federal.[4]

Contudo, a possibilidade de invocação do preâmbulo na interpretação de algum dispositivo constitucional foi utilizada pela Primeira Turma do STF no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 26071. Nesse processo, decidiu-se que certo candidato portador de doença denominada “ambliopia” tem direito à concorrer nas vagas reservadas aos deficientes físicos. Na espécie, o relator fundamentou sua interpretação do princípio da igualdade numa disposição do preâmbulo da atual Constituição (“sociedade fraterna”): “A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.”[5]

Portanto, é correto afirmar que, embora não seja uma norma jurídica (o que impede de ser utilizado como parâmetro de controle de constitucionalidade), o preâmbulo é um importante instrumento no processo de interpretação dos dispositivos da Constituição.


[1] MALUF, Sahid. Direito Constitucional. São Paulo: 1976, p. 60.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada, vol. 1, 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 180.

[3] Idem, p. 181.

[4] STF,  ADI 2076, Relator:  Min. Carlos Velloso, DJ 08-08-2003, p. 86.

[5] STF, RMS 26071, Relator:  Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJe-018, 31-01-2008.


Direito à privacidade e fiscalização do conteúdo de e-mail corporativo

6 de dezembro de 2010

 

Atualmente, é comum as empresas disponibilizarem aos seus empregados e-mails corporativos. Nesse contexto, existe uma grande discussão acerca da possibilidade de o empregador fiscalizar o conteúdo das mensagens enviadas pelos empregados no âmbito dessas correspondências eletrônicas.

Esse tema é complexo, envolvendo a aplicação do direito fundamental à privacidade nas relações privadas. Talvez, alguns não percebam, mas a incidência dos direitos fundamentais na esfera privada envolve sempre uma ponderação de interesses entre valores constitucionais em conflito. Na espécie, há uma colisão entre o direito à privacidade do empregado e o direito do empregador de gerir sua empresa como melhor lhe aprouver (autonomia privada).

Para o Tribunal Superior do Trabalho, o e-mail corporativo é uma ferramenta de trabalho para a comunicação institucional, razão pela qual é lícito o controle do conteúdo das mensagens. Os seguintes precedentes mostram bem esse entendimento:

PROVA ILÍCITA. “E-MAIL” CORPORATIVO. JUSTA CAUSA. DIVULGAÇÃO DE MATERIAL PORNOGRÁFICO. 1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estritamente pessoal, ainda que virtual (“e-mail” particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade. 2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado “e-mail” corporativo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profissional. Em princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço. (…) 5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em “e-mail” corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal. 6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento. (TST- RR-613/2000-013-10-00.7, 1ª Turma, Rel. Min. JOÃO ORESTE DALAZEN, DJ de 10/6/2005)

RECURSO DE REVISTA OBREIRO: I) DANO MORAL – NÃO CARACTERIZAÇÃO – ACESSO DO EMPREGADOR A CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO – LIMITE DA GARANTIA DO ART. 5º, XII, DA CF. 1. O art. 5º, XII, da CF garante, entre outras, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e da comunicação de dados. 2. A natureza da correspondência e da comunicação de dados é elemento que matiza e limita a garantia constitucional, em face da finalidade da norma: preservar o sigilo da correspondência – manuscrita, impressa ou eletrônica – da pessoa – física ou jurídica – diante de terceiros. 3. Ora, se o meio de comunicação é o institucional – da pessoa jurídica -, não há de se falar em violação do sigilo de correspondência, seja impressa ou eletrônica, pela própria empresa, uma vez que, em princípio, o conteúdo deve ou pode ser conhecido por ela. (…). 5. Portanto, não há dano moral a ser indenizado, em se tratando de verificação, por parte da empresa, do conteúdo do correio eletrônico do empregado, quando corporativo, havendo suspeita de divulgação de material pornográfico, como no caso dos autos. (TST, ED-RR – 996100-34.2004.5.09.0015 Data de Julgamento: 18/02/2009, Relator Ministro: Ives Gandra Martins Filho, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/02/2009).

Na doutrina, esses precedentes são vistos com reservas. Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “em linha de princípio, salvo uma ponderação mais robusta, não nos parece razoável permitir à empresa invadir a privacidade do empregado, tendo tendo acesso ao que é escrito. Em especial, quando o empregador não permite ao seu obreiro o acesso ao email particular, obrigando à utilização do email corporativo. Parece que é prestigiar mais o patrimônio do que a personalidade. O ter, em lugar do ser.” (Direito Civil – Teoria Geral, 8ª ed. 2009, p. 197).


A atuação do Advogado-Geral da União no controle concentrado de constitucionalidade

29 de novembro de 2010

O Advogado-Geral da União possui duas funções definidas na Constituição Federal. Há uma competência geral (art. 131), que é a chefia da Advocacia-Geral da União e outra especial, relacionada ao controle de constitucionalidade abstrato, a qual é prevista no art. 103, § 3º, da CF:

§ 3º – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.

Segundo o citado dispositivo, compete à figura do Advogado-Geral da União a relevante missão constitucional de defender, no âmbito do controle abstrato de normas, a lei ou ato normativo impugnado, seja ele federal ou estadual. Observe-se que, caso a lei impugnada for oriunda de algum Estado-membro da federação, o Advogado-Geral não atuará como órgão federal, mas como um ator jurídico nacional, desempenhando a função de defensor legis.

Contudo, o STF admite que Advogado-Geral não é obrigado a sempre defender uma lei tida por inconstitucional. Segundo a Suprema Corte, caso exista jurisprudência pacífica acerca da inconstitucionalidade argüida, não há sentido exigir do Advogado da União a defesa de lei manifestamente contrária à Carta Magna. Há outro caso em que o Advogado-Geral não está obrigado a defender o ato impugnado. É a situação em que se questiona a constitucionalidade de lei contrária aos interesses da União. De fato, nessa hipótese, cabe-lhe o dever de proteger o interesse federal, mesmo que isso implique na abdicação da função de defensor legis.

Finalmente, o Advogado-Geral não participa dos processos referentes às ações declaratórias de constitucionalidade e às ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. Com efeito, na ADC almeja-se a declaração de constitucionalidade da lei; na ADI por omissão, objetiva-se o reconhecimento de uma situação de mora legislativa, não havendo, em ambos os casos, matéria a ser defendida por tal autoridade.


O julgamento da “lei da ficha limpa” no STF

24 de setembro de 2010

Onze horas de julgamento para não se chegar à conclusão alguma. Foi o resultado das duas excêntricas sessões plenárias do STF, ocorridas no julgamento do RE nº 630.147, no qual o candidato ao Governo do Distrito Federal Joaquim Roriz impugna a validade da “lei ficha limpa”.

O grande tema objeto de discussão foi saber se a Lei Complementar nº 135/2010 poderia ser aplicada nas Eleições 2010, impossibilitando o registro de candidaturas de pessoas enquadradas nos novos casos de inelegibilidade.

A atuação dos Ministros da Suprema Corte foi surreal: após, horas de leituras de votos intermináveis e altamente fundamentados, ainda houve discussões em plena madrugada. Contudo, prevaleceu um frustrante empate: cinco Ministros foram pela aplicação imediata e outros cinco adotaram tese oposta: a da inaplicabilidade imediata.

O grande problema consiste em saber como resolver esse empate. Uma corrente defende que, em face do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, o empate significaria o reconhecimento da legitimidade da lei. Outros defenderam a aplicação do “voto de Minerva” pelo Presidente do STF, tese rejeitada pelo próprio Cezar Peluso: “Não tenho nenhuma vocação para déspota. E não acho que o meu voto valha mais do que o de outros ministros”. Contudo, parece que vai prevalecer a velha jurisprudência no sentido de que é necessário esperar o voto do novo Ministro, a ser nomeado pelo Presidente Lula. Grande ironia foi feita pelo Ministro Marco Aurélio, que propôs a convocação do mandatário maior da nação para decidir o  impasse: “Deveríamos chamar para decidir o responsável por essa cadeira vaga”.

Para completar, segundo o site consultor jurídico, os advogados do recorrente Joaquim Roriz estão preparando pedido de desistência do recurso, o que poderá sepultar definitivamente horas e horas de debates. Em todo caso, parece razoável a tese de que, em caso de repercussão geral, o recurso extraordinário assume uma natureza objetiva, razão por que o recorrente  não pode dele desistir ao seu bel prazer.

Sem dúvida, o valor fundamental da segurança jurídica encontra-se maculado com a indefinição, sendo os eleitores os grandes prejudicados nesse estranho processo eleitoral.


A memorável passagem de Eros Grau pelo STF

19 de agosto de 2010

No dia 02 de agosto de 2010, foi publicado no Diário Oficial da União o ato do Presidente da República, concedendo aposentadoria ao Ministro Eros Grau. É o fim da “Era Eros” no STF, que se iniciou em 30 de junho de 2004.

Segundo seus assessores e amigos mais próximos, Eros Grau teria cogitado deixar a Corte um ano antes, pois não mais se sentia à vontade nas longas sessões de julgamento, marcadas pelos intermináveis debates e pelo volume excessivo de processos. O certo é que, em sua passagem pela Suprema Corte, o Ministro Eros nos deixou um precioso legado de grandes acórdãos, fruto de sua vasta cultura geral e jurídica e de sua larga experiência de vida.

Por isso, em homenagem a essa grande figura, destacamos algumas de suas idéias sobre a interpretação e aplicação do Direito, expressas no importante julgamento da ADPF nº 153, que versou sobre a Lei nº 6.683/79 (popularmente conhecida como “lei de anistia”). Nessa decisão, Eros Grau nos brindou com grandes lições acerca da moderna interpretação (distinção entre texto e norma), bem como sobre a interpretação das chamadas “leis-medida”. Vejamos:

Distinção entre texto e norma: “Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.”

Interpretação das “leis-medida”: “O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahme­gesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, “se procurou” [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento — o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.” ADPF N.153-DF, RELATOR: MIN. EROS GRAU


Separação judicial e divórcio após a EC nº 66, de 13 de julho de 2010

19 de julho de 2010

No dia 14 de julho de 2010, foi publicada uma Emenda Constitucional que operou uma revolução no Direito de Família brasileiro. Estamos falando da EC nº 66/2010, a qual procurou facilitar o acesso ao divórcio no Brasil, “suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.”

Para se entender o significado dessa alteração do texto constitucional, façamos uma breve diferenciação entre os institutos da separação e do divórcio.

Conforme ensinam os civilistas, o casamento é constituído pela sociedade conjugal e pelo vínculo conjugal. Com a separação judicial, ocorre o  fim da sociedade conjugal, cessando  os deveres de coabitação, fidelidade recíproca e o regime de bens. Contudo, a separação não acarreta o fim do vínculo matrimonial. Assim, pessoas separadas não poderiam se casar, embora a lei admitisse a possibilidade de terem união estável com terceiros (art. 1.723, § 1º, CC). Por outro lado, nada impedia que pessoas separadas  após reconciliação, voltassem a viver juntas, fazendo ressurgir a sociedade entre elas. Por sua vez, o divórcio é algo mais radical, pois significa a dissolução do vínculo matrimonial. Assim,  pessoas divorciadas  podem se casar novamente ou ter união estável. Ademais, uma vez divorciados, ex-marido e ex-esposa somente podem reconstituir a sociedade conjugal e o vínculo após novo casamento.

Antes da EC nº 66/2010, a separação judicial ou de fato era uma etapa a ser cumprida para se pleitear o divórcio. Esse obstáculo ao fim do vínculo matrimonial era imposto pelo art. 226, § 6º, da CF, segundo o qual: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.”

Após essa emenda constitucional, o art. 226, § 6º, da CF passou a ter uma redação mais simples: “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” Na realidade, por meio dessa simplificação, duas modificações de impacto foram feitas: a) o fim do instituto da separação judicial; b) a extinção “do prazo mínimo para a dissolução do vínculo matrimonial (eis que não há mais referência à separação de fato do casal há mais de dois anos).” (STOLZE, Pablo. A Nova Emenda do Divórcio: Primeiras Reflexões).

Portanto, a emenda permite que homem e mulher se casem hoje e, no outro dia, façam, se assim quiserem, o divórcio. Trata-se de algo relativamente fácil, pois a Lei n. 11.441/2007 regulou o divórcio administrativo, permitindo aos casais, sem filhos menores ou incapazes, a possibilidade de, consensualmente, lavrar escritura pública de divórcio, em qualquer Tabelionato de Notas do Brasil.

Antes da emenda da EC nº 66/2010, a consumação do divórcio era algo que a ordem jurídica evitava, imponde grandes dificuldades e entraves burocráticos. Vale dizer: para que ocorresse o divórcio era necessário que os cônjuges estivessem separados por algum tempo (um ano se a separação fosse judicial e dois se fosse de fato).

Acreditamos que essa emenda é positiva. Segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, “Além de reduzir a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos, a medida acarretará economia de recursos técnicos e financeiros para o Judiciário e para os indivíduos que pretendem se divorciar, uma vez que não serão necessários os dois processos, separação judical e divórcio”.

Para o professor da Rede LFG e magistrado na Bahia Pablo Stolze, “O que se quis, em verdade, por meio da aprovação da recente Emenda do Divórcio, é permitir a obtenção menos burocrática da dissolução do casamento, facultando, assim, que outros arranjos familiares fossem formados, na perspectiva da felicidade de cada um. Pois sem amor e felicidade não há porque se manter um casamento.”

A EC nº 66/2010 prova que, às vezes, uma simples alteração legislativa é suficiente para pôr abaixo correntes jurisprudências consolidadas, sólidas lições doutrinárias e livros jurídicos inteiros. Quando mudanças desse jaez se processam, doutrinadores terão que reescrever capítulos de suas obras; e igual trabalho terão os atualizadores, que passarão à condição de verdadeiros autores, reformulando radicalmente as obras de juristas finados.


Controle de constitucionalidade abstrato nos Estados

17 de junho de 2010

 Previsão. O sistema de controle de constitucionalidade abstrato dos Estados é previsto no art. 125, § 2º, da CF. Segundo esse dispositivo, “cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.”

 Parâmetro de controle. No sistema de controle de constitucionalidade dos Estados, o parâmetro a ser utilizado para aferir legitimidade dos atos impugnados é a respectiva constituição local. Por isso, em diversas oportunidades, o STF entendeu inconstitucionais normas que fixaram a Constituição Federal como parâmetro de controle.[1] Registre-se que quaisquer dispositivos das constituições estaduais podem servir como parâmetro no controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais. Assim, nada impede que seja argüida a inconstitucionalidade de lei com base em dispositivo da Constituição estadual que seja mera repetição da Constituição Federal, tal como se pode verificar no seguinte julgado do STF:

 “É competente o Tribunal de Justiça (e não o Supremo Tribunal), para processar e julgar ação direta contra lei estadual contrastada com a norma da Constituição local, mesmo quando venha esta a consubstanciar mera reprodução de regra da Carta Federal, cabendo, em tese, recurso extraordinário de decisão que vier a ser proferida sobre a questão.“[2]

Da mesma forma, as normas constitucionais estaduais de caráter remissivo podem embasar as ações diretas perante o respectivo Tribunal de Justiça. Remissivas são as normas cujo conteúdo somente é compreendido, mediante a consulta a outras normas. Exemplo de norma remissiva que pode eventualmente aparecer em alguma Constituição Estadual:  “Art. 22. A aposentadoria dos servidores públicos  estaduais observará o disposto no art. 40 da CF”. Segundo Gilmar Mendes, “tal qual o entendimento adotado na RCL n° 383 para as hipóteses de normas constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos da Constituição Federal, também as normas constitucionais estaduais de caráter remissivo podem compor o parâmetro de controle das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual.”[3]

 Legitimidade. O art. 125, § 2º, in fine, da CF estabelece que, no âmbito do sistema de fiscalização abstrata de normas dos Estados, é vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. Esse dispositivo, evidentemente, não ordena que os Estados observem, por simetria, o disposto no art. 103 da CF. O que visa à norma é evitar que o constituinte estadual crie a legitimação única em favor de determinado órgão ou entidade. Assim, nada impede que a Constituição legitime na interposição de ação direta pessoas diversas das que constam do art. 103 da CF, a exemplo de deputado estadual ou do Defensor Público-geral do Estado. A título de exemplo, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro conferiu legitimidade a essas pessoas e o STF entendeu que o preceito era constitucional:

ARGÜIÇÃO DE INVALIDADE, EM FACE DO MODELO FEDERAL DO ART. 103 CF, DA OUTORGA DE LEGITIMAÇÃO ATIVA A DEPUTADOS ESTADUAIS E COMISSÕES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, ASSIM COMO AOS PROCURADORES-GERAIS DO ESTADO E DA DEFENSORIA PÚBLICA: SUSPENSÃO CAUTELAR INDEFERIDA, A VISTA DO ART. 125, PAR. 4., DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.[4]


[1] STF, ADI N. 347-SP, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Informativo 445. [2] STF, Rcl 4432/TO, Relator: Min. Gilmar Mendes, Fragmento da Decisão, Informativo 444. [3] Idem. [4] STF, ADI 558 MC, Relator:  Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 16/08/1991, DJ 26-03-1993 PP-05001


O que é o neoconstitucionalismo?

3 de junho de 2010

Após a Segunda Guerra Mundial, ficou evidente que o velho constitucionalismo europeu caracterizado pelo culto ao legislador e pelo fetiche à lei mostrou-se incapaz de evitar o surgimento de regimes totalitários responsáveis por sistemáticas violações a direitos fundamentais. Assim, sob as ruínas do velho continente, nasce um movimento, denominado “neoconstitucionalismo”, que procura reconstruir as bases do Direito Constitucional.

Em grande parte, foi essencial para o desenvolvimento do neoconstitucionalismo, a promulgação de constituições de caráter social e democrático, marcadas pela positivação de princípios jurídicos, pela previsão de amplos catálogos de direitos fundamentais e pela contemplação de normas programáticas. Inicialmente, na Itália (1947) e na Alemanha (1949) e, depois, em Portugal (1976) e na Espanha (1978), essas constituições marcam a ruptura com o autoritarismo e  sacramentam o compromisso  desses povos com a paz, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos.

Esses novos marcos normativos somados à necessidade de superação de um passado recente de horrores exigiram uma nova postura na aplicação e interpretação do direito constitucional.

Assim, o neoconstitucionalismo proclama a primazia do princípio da dignidade da pessoa humana, a qual deve ser protegida e promovida pelos Poderes Públicos e pela sociedade. Da mesma forma, esse movimento enaltece a força normativa da constituição, a qual deixa de ser um mero catálogo de competências e de recomendações políticas e morais, para se tornar um sistema de preceitos vinculantes, capazes de conformar a realidade. No Brasil, os grandes marcos do neoconstitucionalismo são a abertura democrática vivida em meados da década de 1980 e a Constituição de 1988.

Em feliz síntese, Inocêncio Mártires Coelho ensina que esse novo constitucionalismo marca-se pelos seguintes aspectos: “a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisladores; c) mais princípios do que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e) mais concretização do que interpretação”.[1]

Para Luís Roberto Barroso, são características do neoconstitucionalismo a redescoberta dos princípios jurídicos, (em especial a dignidade da pessoa humana), a expansão da jurisdição constitucional com ênfase no surgimento de tribunais constitucionais e o desenvolvimento de novos métodos e princípios na hermenêutica constitucional.

Observe-se que as leituras desses autores em pouco se diferem. Na realidade, mais do que decorar teorias ou pontos de vista, o que interessa é que os intérpretes e aplicadores do direito busquem tornar a Constituição viva e eficaz.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 127.


A natureza jurídica dos Tribunais de Contas na ótica de Carlos Ayres Britto

23 de maio de 2010

No post anterior, demos ênfase às idéias filosóficas desenvolvidas por Carlos Ayres Britto em sua conferência no I Encontro Técnico dos Tribunais de Contas Norte e Nordeste do Brasil. Como visto, nessa rica explanação, o Ministro exortou os operadores jurídicos a interpretar e aplicar o direito positivo de forma humanista. Agora, é chegado o momento de escrevermos  sobre a segunda parte da palestra: a natureza jurídica dos Tribunais de Contas.

Segundo Ayres Britto, o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional, sendo uma interpretação pobre considerá-lo como tal pelo só fato de a Constituição inseri-lo no capítulo do Poder Legislativo. Por analogia, esse raciocínio aplica-se aos demais entes da Federação em relação a suas Cortes ou seus Conselhos de Contas.

Com efeito, nos termos do art. 44, caput, da CF, expressamente é dito que os órgãos do Poder Legislativo da União são a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Ademais, os Tribunais de Contas pautam-se, em seus julgamentos, em critérios objetivos de natureza técnico-jurídica e não em meros juízos de conveniência e oportunidade típicos das deliberações políticas. Finalmente, a referência organizacional das Cortes de Contas é o próprio Poder Judiciário, sendo-lhe aplicável a autonomia administrativa e financeira típica dos tribuanais em geral (art. 73, caput, da CF), com o detelhe de que seus membros [Ministros, Conselheiros e Auditores (Ministros  Substitutos ou  Conselheiros Substitutos)] possuem as prerrogativas dos magistrados (art. 73, § § 3º e 4º, c/c o art. 75 da CF).

É certo que a Constituição Federal afirma que o Tribunal de Contas da União auxilia o Congresso Nacional em sua função fiscalizadora (art. 71, caput); porém, o referido auxílio não significa subordinação e sim cooperação, tal como faz o Ministério Público em relação ao Poder Judiciário.

Assim, para o ora Vice-Presidente do STF, os Tribunais de Contas, tal como o Ministério Público, são órgãos que não se inserem no esquema da tripartição dos Poderes. As Cortes de Contas são órgãos do Estado (sentido amplo), mas não integram  qualquer dos Poderes do Estado. Nesse norte, o TCU é um órgão da União “per saltum”, não passando por nenhum dos três Poderes que a compõem.

Essas observações possuem profundas conseqüências práticas. Reconhecida a natureza de órgão de extração constitucional, há um fortalecimento dos julgamentos das Cortes de Contas em prol da defesa do Erário. Assim, segundo Ayres Britto, embora não sejam jurisdicionais, as decisões do Tribunal de Contas, no exame das contas dos administradores públicos, não podem ter o mérito analisado pela Poder Judiciário, cabendo-lhe apenas revisar os pronunciamentos que violem as garantias processuais ou legais (direitos individuais).

Para os que quiserem se aprofundar na visão de Carlos Ayres Britto sobre os Tribunais de Contas, recomenda-se a leitura do artigo “O regime constitucional dos Tribunais de Contas”.


Direito e humanismo: o pensamento jurídico-filosófico de Carlos Ayres Britto

22 de maio de 2010

1. O evento

No último dia 21 de maio, Carlos Ayres Britto esteve pela terceira vez em terras paraibanas. Coube-lhe a honrosa missão de encerrar o I Encontro Técnico dos Tribunais de Contas Norte e Nordeste do Brasil, promovido com muita competência e desembaraço pelo TCE-PB.

Ministro do Supremo Tribunal Federal, doutrinador e poeta, Ayres Britto é uma referência cultural nas letras jurídicas nacionais. Em pouco mais de uma hora, o atual Vice-presidente da Suprema Corte discorreu sobre “O papel do novo Tribunal de Contas.

2. O papel do humanismo na interpretação do Direito

Inicialmente, o magistrado conferencista expôs sua concepção teórica sobre a interpretação e a aplicação do Direito. O fio condutor de seu raciocínio foi a tese de que os operadores jurídicos não devem trabalhar os dispositivos legais e constitucionais somente sob o ângulo frio das categorias clássicas da técnica jurídica; para Carlos Ayres Britto, a técnica jurídica é necessária, mas não é suficiente. Assim, aos magistrados, aos advogados, aos membros do Ministério Público, aos Conselheiros e aos Auditores cabe atribuir ao Direito o sentimento humanista que está presente na Constituição.

Com refinado senso crítico, oberva o Ministro  que, no mundo moderno, somos condicionados a pensar dentro de categorias lógicas, estruturadas a partir de métodos rígidos, concebidas segundo o modelo Cartesiano. O sentimento e a intuição são valores relegados ao segundo plano. Daí a célebre frase de René Descartes: “penso, logo existo”. Para um oriental ou mesmo para o Ministro Ayres Britto, soaria melhor: “sinto, logo existo”. Nesse contexto, o positivismo concretiza essas premissas no âmbito jurídico, mediante a necessidade de aplicação técnica, fria e segura do direito, em detrimento da justiça material.

Evidentemente, defender uma aplicação flexível do direito é algo oportuno, mas não é um tema original. Miguel Reale com a sua teoria tridimensional, os realistas jurídicos americanos e os pós-positivistas  defenderam a necessidade de uma ruptura com o positivismo legalista, seja por meio da abertura do Direito à Sociologia, aos valores ou aos princípios constitucionais. Mas o que há de novo no pensamento de Ayres Britto?

O enfoque original desse intelectual advém de uma refinada inspiração nas novas contribuições da Medicina para a compreensão da mente humana. Baseado em Roger Sperry (prêmio Nobel da Medicina em 1981), o Ministro do STF parte da dicotomia do cérebro nos hemisférios direito e esquerdo.

Segundo Sperry, a linguagem, o raciocínio lógico, o cálculo e determinados tipos de memória são próprios do hemisfério esquerdo do cérebro; ao passo que, no direito, estão o lado intuitivo, a imaginação, o sentimento e a síntese.

Ayres Britto advoga que é chegada a hora de a aplicação do direito ser intuitiva, baseada nos estímulos do hemisfério direito do cérebro. Os juristas têm “orgulho de pensar e medo de sentir”, o que prejudica o exercício da interpretação. Daí a sua forte afirmação de que “o  difícil não é ser um bom operador do direito no plano teórico e conceitual.” Difícil é ser um operador jurídico humano, independente, com coragem para fazer justiça e tirar as leis do papel. A própria origem da palavra “sentença” vem de “sentir”, “abrir o coração”. Segundo Britto, os jovens concurseiros dominam em plenitude a doutrina, a jurisprudência e a legislação; sobra-lhes a razão, mas lhes faltam o sentimento crítico de justiça material e a intuição decisória, derivadas do lado direito do cérebro.

3. Um julgamento humanista: a constitucionalidade da lei de biossegurança

Aplicação concreta de uma visão humanística do direito deu-se no julgamento da ADI 3510, movida pelo então Procurador-Geral da República contra dispositivos da lei de biossegurança que possibilitam pesquisas com células-troco embrionárias.

Nesse caso emblemático caso, Ayres Britto, na condição de relator, formou sua convicção no momento em que, em audiência pública por ele convocada, ouviu o testemunho de uma médica e pesquisadora sobre o caso de uma menina que não tinha os movimentos dos braços e das pernas.

Nessa audiência pública, a pesquisadora narrou ao Ministro que, em certo dia, a referida menina lhe fez uma doce e ingênua pergunta: “doutora, por que a senhora não faz uma buraco nas minhas costas e coloca uma pilha para que eu possa sair andando igual a minhas bonecas?” Nesse momento, o hemisfério direito da mente de Ayres Britto entrou em atividade: “como posso votar desfavoravelmente à constitucionalidade de uma lei tão importante para essas pessoas”. Disse ele: “essa menina elaborou meui voto”: a pilha sonhada pela inocente criança seria algo a ser obtido por meio das pesquisas com as células-tronco.

4. Um julgamento sem humanismo: a impossibilidade de concessão de pensão por morte à concubina

Em determinado momento da palestra, o RE 397762-BA foi citado pelo Ministro Ayres Britto como um caso  no qual o STF se distanciou de uma aplicação humanista do Direito. Nesse famoso julgado, a corrente majoritária entendeu que a chamada “amante” (tecnicamente denominada de “concubina” pelo Código Civil), mesmo tendo uma relação estável e duradoura com um homem casado, não pode gozar de pensão por morte, dividindo-a com a esposa (a mulher “oficial”). Para Ayres Britto, no âmbito de uma sociedade fraterna e pluralista, não há espaço para expressões como “concubinato”. Segundo ele, a Constituição não deve ser lida à luz do Código Civil e sim o Código Civil à luz da Constituição. Contudo, Ayres Britto foi voto vencido nesse importante recurso extraordinário.

5. Epílogo

Em síntese,  ouvir o Ministro Ayres Britto é uma experiência única, recomendável para todos que trabalham com o Direito (sejam ou não graduados nesse ramo do saber). Trata-se de um momento fecundo de abertura da consciência para novas idéias. Daí a razão para compartilhar com os amigos leitores a síntese de algumas idéias desenvolvidas por esse expoente da cultura jurídica, do civismo e do humanismo.

(Fotos: franciscofalconi)


O Senado no controle difuso de constitucionalidade: pode o STF alterar a regra do art. 52, X, da CF/88?

4 de maio de 2010

No sistema difuso de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, qualquer juiz ou tribunal pode, no exame de caso concreto, afastar a aplicação de certa lei por considerá-la eivada de inconstitucionalidade formal ou material.

No direito constitucional norte-americano, quando a Suprema Corte, no exame de caso concreto, declara a inconstitucionalidade de uma lei, a decisão é seguida por todos os demais juízes e tribunais, possuindo nítido efeito erga omnes. É a doutrina do stare decisis, a qual se baseia em usos e costumes do common law.

No Brasil, a decisão no controle difuso só atinge as partes envolvidas no processo. Excepcionalmente, uma declaração de inconstitucionalidade em controle difuso poderá ter efeitos erga omnes, desde que o Senado Federal, nos termos do art. 52, X, da CF, edite resolução suspendendo, total ou parcialmente, lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do STF. Contudo, a decisão senatorial terá efeitos ex nunc.

A primeira Constituição a prever a participação do Senado no controle de constitucionalidade foi a de 1934. Segundo o Ministro Moreira Alves, “por não haver, no Brasil, arraigada mentalidade do respeito ao precedente judicial, foi necessário criar um instituto que, de certa forma, constituísse como que um sucedâneo do princípio stare decisis.”

Atualmente, o Ministro Gilmar Mendes está defendendo a tese de que as decisões do STF, em controle difuso, também devem ter efeitos erga omnes e vinculantes. Assim, haveria uma mutação constitucional na interpretação do art. 52, X, da CF, passando a resolução senatorial apenas a dar publicidade à decisão do STF em controle difuso, a qual já teria efeitos erga omnes e vinculante com o próprio pronunciamento do Pretório Excelso.

O que está sendo proposto pelo Ministro Gilmar Mendes é mais ou menos o seguinte: o art. 52, X, da CF, que tem o seguinte teor “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” passaria a ser lido como “compete ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo”.

No tocante a essa suposta “mutação constitucional”, não há dúvida de que o STF está excedendo as suas atribuições de legislador negativo, tornando-se “um órgão constituinte de plantão”, eis que está glosando da Constituição Federal uma atribuição legítima do Senado Federal, equiparando-o à Imprensa Nacional.

Lênio Streck, por sua vez, vê na atuação do Senado um elemento democrático no controle difuso, razão pela qual se opõe a tese de Gilmar Mendes. Diz Lênio: “Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988.”

A questão do efeito vinculante em controle difuso encontra-se pendente de julgamento na Reclamação 4335-5, havendo dois votos favoráveis à tese (Gilmar Mendes e Eros Grau) e dois contrários (Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa).


Concepção sociológica de constituição

28 de abril de 2010

Em abril de 1862, o socialista alemão Ferdinand Lassalle fez uma célebre conferência em Berlim sobre o conceito ou a essência da Constituição. A premissa que embasou a exposição foi a seguinte: as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas problemas que se resolvem pelas forças políticas existentes em cada  sociedade.

À luz dessa concepção teórica, Lassalle propôs a diferenciação entre a Constituição jurídica ou escrita e a Constituição real ou efetiva.

A Constituição real é o “somatório dos fatores reais de poder” que vigoram num Estado. Tais fatores constituem a força ativa e informadora, que influencia e informa as leis e as intuições políticas da sociedade. Ao analisar a conjuntura política da Prússia em 1862, Lassale chegou à conclusão de que os setores ligados à monarquia, às forças armadas, à aristocracia rural, aos banqueiros, à grande burguesia, à pequena burguesia (classe média) e à classe trabalhadora seriam esses fatores reais de poder. Da mesma forma, assevera que todos os países têm e sempre tiveram uma Constituição real e efetiva, sendo errado pensar que se trata de um produto da modernidade.

Por sua vez, a Constituição jurídica ou escrita é algo específico dos tempos modernos. Trata-se de um solene documento (“folha de papel”), cuja finalidade é resumir as instituições e princípios de governo do país. Para Lassale, uma Constituição jurídica somente será “boa e duradoura” quando corresponder à constituição real. Daí a sua célebre conclusão: “Onde a constituição escrita não corresponde à real, estoura inevitavelmente um conflito que não há maneira de evitar e no qual, passado algum tempo, mais cedo ou mais tarde, a Constituição escrita, a folha de papel, terá necessariamente de sucumbir perante o empuxo da Constituição real, das forças verdadeiras vigentes no país. “

A importância dessa contribuição teórica foi o reconhecimento de que, inevitavelmente, os fatores sociais, políticos e econômicos são relevantes para a compreensão do fenômeno constitucional. Contudo, a grande crítica que se pode fazer a essa linha de pensamento é negar o próprio Direito Constitucional, enquanto ciência e fonte do direito. Como bem ressaltou Konrad Hesse:  “Se Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização enquanto ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferenciá-la da Sociologia ou da Ciência Política.” (Cf. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes).