1. Introdução.
Há dois anos, este blog trouxe uma postagem sobre a definição jurídica de organizações criminosas e os fatores que as diferenciavam das quadrilhas e das associações criminosas. Até junho de 2012, nada de novo ocorreu relacionado ao tema. Contudo, desde então, muitas novidades jurídico-criminais surgiram, com destaque ao julgamento do HC 96.007/SP e ao advento da Lei n. 12.694, de 24 de julho de 2012 (DOU de 25/07/2012). Por isso, mostra-se oportuno revisitar o tema “organizações criminosas”.
2. O vazio legislativo e a aplicação da Convenção de Palermo.
Todos sabem que, em matéria de legislação penal, o Brasil é um exemplo a não ser seguido. Não falo sobre o conteúdo político-criminal das leis, mas da péssima técnica legislativa nelas utilizadas. Por isso, temas simples que, em situações normais, não gerariam dúvidas acabam se transformando em desafios hermenêuticos, dividindo opiniões juristas e trazendo decisões judiciais nos mais diversos sentidos. O resultado que essas leis mal concebidas é a “insegurança jurídica”. Foi exatamente o que ocorreu em relação às organizações criminosas.
Com efeito, em 04 de maio de 1995, entrou em vigor a Lei n. 9.034/1995. Esse diploma estabeleceu normas sobre procedimentos investigatórios e meios de prova relacionados aos ilícitos praticados por organizações criminosas. Pouco depois, editou-se a Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, que tipificou o crime de lavagem de dinheiro, considerando como tal a reintrodução na economia de valores oriundos de crimes praticados por organizações criminosas (art. 1º, inciso VII, redação original). O que gerou perplexidade é que, em ambas as leis, não havia uma definição sobre organizações criminosas.
Diante desse cenário nebuloso, o Superior Tribunal de Justiça procurou dar eficácia a essa legislação, legitimando o combate às organizações criminosas. Para tanto, trilhou-se pelo entendimento de que, diante da ausência de definição legal, poderiam os intérpretes e aplicadores da lei utilizar a definição de organização criminosa contida na Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, realizada em 15/12/2000 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.015/2004). Nesse sentido, confiram-se a Ação Penal nº 460 e o Habeas Corpus nº 77.771-SP.
Pois bem. De acordo com a Convenção de Palermo, organização criminosa “é o grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.
3. A polêmica decisão do STF e as inovações legislativas.
No julgamento do HC 96.007/SP (Rel. Min. Marco Aurélio), a Suprema Corte decidiu que a Convenção de Palermo é imprestável para definir organizações criminosas. Entendeu-se que viola o princípio da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX, da CF) tratados internacionais estabelecerem o contorno de normas penais incriminadoras (cf. Informativo 670). Seguiu-se, portanto, o crítico entendimento há muito defendido por Luiz Flávio Gomes.
A consequência imediata dessa decisão é a atipicidade das situações de lavagem de dinheiro decorrentes do produto dos crimes cometidos por organizações criminosas. Na realidade, em matéria de lavagem de capitais, a decisão da Suprema Corte somente não criou uma situação de total impunidade, em razão da Lei n. 12.683/2012 (DOE de 10/07/2012), que passou a considerar como crime de lavagem qualquer ocultação ou dissimulação dos valores obtidos de infração penal.
Em relação aos aspectos processuais dos crimes cometidos por organizações criminosas, a situação de vácuo decorrente do julgamento do HC 96.007/SP foi superada pela Lei n. 12.694/2012. De acordo com o art. 2º dessa lei, considera-se organização criminosa “a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.”
Observe-se que, tal como a definição da Convenção de Palermo, a nova lei exige a presença mínima de 3 pessoas para haver uma organização criminosa. Enquanto o tratado se refere a “infrações graves”, a lei é mais segura e precisa ao se reportar a crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 anos ou que sejam de natureza transnacional.
Em todo caso, mesmo com o advento da nova lei, os efeitos do HC 96.007/SP serão profundos no universo da investigação e do processo criminal. De fato, muitas provas obtidas nos termos da Lei n. 9.034/1995 poderão ser consideradas ilícitas, o que gerará a anulação de processos e a absolvição por prescrição de muitos réus. Lembremos que, por ter conteúdo penal, a Lei n. 12.694/2012 somente será aplicada aos crimes cometidos após sua vigência, não podendo ter eficácia retroativa para convalidar os atos feitos com base na Convenção de Palermo.