O princípio da boa-fé objetiva e seus desdobramentos: “venire contra factum proprio”, “supressio”, “surrectio” e “tu quoque”

O princípio da boa-fé objetiva tem raiz no Direito alemão, na famosa expressão treu und glauben. Literalmente, essas expressões podem ser traduzidas ao português como “lealdade” e “confiança”. Na linguagem jurídica, aquelas palavras foram incorporadas ao Direito brasileiro com a denominação “boa-fé objetiva”, positivada no art. 422 do Código Civil.

Em termos gerais, a boa-fé objetiva é uma cláusula geral que impõe o dever de as partes manterem um padrão de comportamento marcado pela lealdade, honestidade, cooperação, de modo que uma não se lese a legítima confiança depositada pela outra. O princípio da boa-fé objetiva possui diversos desdobramentos ou funções reativas: a) venire contra factum proprio; b) supressio; c) surrectio; d) tu quoque.

O desdobramento matriz da boa-fé objetiva é a regra proibitiva, de origens medievais, denominada venire contra factum proprio. Essa expressão, literalmente, pode ser traduzida como a proibição de “vir contra fato que é próprio”. Tecnicamente, em nome da segurança e da confiança, veda-se que um agente, em momentos diferentes, adote comportamentos contraditórios entre si, prejudicando outrem.

O art. 330 do Código Civil é exemplo de dispositivo legal do quel se extrai norma derivada do venire contra factum proprio. De acordo com essa artigo, o pagamento reiteradamente feito em outro lugar faz presumir renúncia tácita do credor relativamente ao previsto no contrato.  Assim, se o contrato previu que Campina Grande seria o local do pagamento, mas, durante certo período, o credor aceitou que o pagamento fosse feito em João Pessoa, ele não poderá alegar que o devedor cometeu ato ilícito. Haverá o supressio do direito de o credor receber em Campina Grande e o surrectio do direito do devedor pagar em João Pessoa.

Nesse contexto, fica claro que o supressio e o surrectio são faces da mesma moeda ou derivações do venire contra factum proprio. O supressio se consuma quando a parte, ao deixar de exercer um direito, por determinado espaço de tempo, vem a perdê-lo devido à consolidação de situação favorável à outra parte, beneficiada pela surrectio. Quando uma parte perde um direito, sofre supressio; consequentemente, outra parte ganha algo, ocorrendo o surrectio.

Como desdobramento da boa-fé objetiva, podemos também citar o tu quoque. Trata-se de uma partícula extraída da célebre frase dita Júlio César ao ser apunhalado, covardemente e de surpresa, por seu filho: tu quoque Brutus filie mi (“até tu Brutos, filho meu”). Assim, o tu quoque, quando aplicado na relação privada, pretende evitar a quebra da confiança pelo comportamento marcado pela surpresa ou ineditismo.

A exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) é exemplo tu quoque. Segundo o art. 476, nos contratos bilaterais, antes de cumprida a sua obrigação, uma parte não pode exigir o implemento da obrigação do outro. Imagine-se um contrato de empreitada, segundo o qual uma pessoa se obriga a entregar materiais para que outrem realize certa obra. Nesse caso, o contratante interpõe uma ação, exigindo que o contrato entregue a obra, sem ao menos ter entregado os materiais. Fica clara a possibilidade de a outra parte apresentar contestação, contendo a exceção do contrato não cumprido. Quando o dono da obra entrega os materiais defeituosos ou insuficientes, a defesa será a exceptio rite adimpleti contractus.

Todos os desdobramentos da boa-fé objetiva são instrumentos essenciais para a resolução das mais variadas questões jurídicas. Compreendê-los é a ordem do dia no Direito Privado.

6 Responses to O princípio da boa-fé objetiva e seus desdobramentos: “venire contra factum proprio”, “supressio”, “surrectio” e “tu quoque”

  1. Cristiana disse:

    Muito boa essa explanação de boa fé objetiva … mais completa que isso só mesmo na obra do grande civilista Pablo Stolze…e esse tema é relevante em vários aspectos e abrange diversas áreas!

  2. Ana Cristina disse:

    Muito obrigada !Ficou tudo bem esclarecido!

  3. Jessica disse:

    muito claro e objetivo, e ao mesmo tempo, completo!

  4. Marco Antonio Das Mercês disse:

    Foi um trabalho muito bom e me ajudou bastante ,obrigado !!!

  5. Iva Maria disse:

    parabéns pelo trabalho ajudou demais

  6. mirella disse:

    Gosto deste tipo de redação simples e esclarecedora. Conteúdo é mais importante que o “juridiquez” tao utilizado neste tipo de artigo.
    Parabéns

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