Cabimento da assistência em processos de execução

25 de agosto de 2014

Depois de uma longa pausa, volta-se a escrever sobre temas jurídicos neste blog. Hoje trataremos da admissibilidade da assistência em processo de execução.

De início, lembro que a assistência de que falamos é uma espécie de intervenção de terceiros, por meio da qual um terceiro, dotado de interesse jurídico, ingressa em processo para auxiliar uma parte em detrimento da outra. Em relação à execução, a admissibilidade da assistência é tema altamente controvertido, podendo ser identificadas duas correntes interpretativas.

A primeira corrente entende não ser cabível tal espécie de intervenção de terceiros no processo de execução. Alega-se que, em razão de execução não findar com uma sentença certificadora de um direito subjetivo, não caberia a assistência, a qual, ao fim e ao cabo, apenas atrapalharia a marcha processual em prol da satisfação do crédito exequendo, mormente quando feita pelo executado.

Na doutrina, colhe-se o magistério de Antônio Cláudio Costa Machado, segundo o qual não cabe a assistência, pois a execução “[…] não visa à sentença, ou seja à definição de direitos”.1 Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, já decidiu, em pelo menos duas ocasiões, no sentido de ser “inviável a intervenção de terceiros sob a forma de assistência em processo de execução2

A segunda correte, porém, admite a assistência no processo executivo sem restrições, rebatendo todos os argumentos da tese negativista. Nesse sentido, são os ensinamentos de Araken de Assis em sua clássica obra sobre execução:

Mas exageram no rigorismo os adversários da assistência. Por primeiro, há sentença no processo executivo (art. 795) e ela pode favorecer ao exequente, na clássica hipótese de satisfação do crédito (art. 794, I) ou ao executado se, por qualquer motivo, extinguir-se a execução sem perda patrimonial. Fato líquido é que o art. 50, caput, não alude à sentença de mérito.” 3

Da mesma forma, entende ser possível a assistência na execução o professor Daniel Amorim Assumpção Neves. Segundo ele, “o que importa em termos de geração de efeitos do processo não diz respeito estritamente à sentença, porque não é ela, e sim o resultado da demanda que tem aptidão de afetar a esfera jurídica de terceiros.”4 Na mesma linha, posicionam-se Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, bem como Fredie Didier Jr et al,  os quais entendem ser possível a assistência em processo de execução.5

Não faltam exemplos para mostrar o cabimento da assistência. Araken de Assis cita o “debenturista ansioso pelo êxito do agente fiduciário”, bem como caso em que a 3ª Câmara Cível do TARS “reconheceu interesse ao terceiro adquirente da coisa penhorada em assistir ao executado e alienante, defendendo a higidez do negócio, de outra maneira passível de ineficácia por fraude.”

Por sua vez, Marinoni e Arenhart citam o exemplo do fiador que, “visando evitar eventual responsabilidade subsidiária pelo pagamento de certa dívida, ou para assegurar o proveito de bem penhorado, poderá intervir como assistente, quer do credor, quer do devedor, não importanto a forma assumida da execução”.

Ora, sem dúvida a melhor interpretação, é aquela que admite a assistência no processo de execução. Aqui, o terceiro buscará que o procedimento executivo tenha o resultado prático mais favorável a sua esfera de interesses. Assim, a intervenção em prol do exequente será no sentido de se obter a satisfação plena do crédito. Por sua vez, a intervenção em prol do executado buscará a extinção da execução para salvaguardar o assistente de alguma consequência negativa da execução para sua esfera de interesses.

Portanto, os argumentos em prol da assistência nos processos de execução são sólidos, sendo incompreensível a resistência do STJ em admiti-la.

____________________________

1MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 7ª ed. Barueri: Manole, 2008, p. 59.

2 STJ, AgRg no REsp 911.557/MG, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 21/06/2011, DJe 29/06/2011. No mesmo sentido, STJ, REsp 329.059/SP, Rel. Ministro Vicente Leal, Sexta Turma, julgado em 07/02/2002, DJ 04/03/2002, p. 306.

3 ASSIS, Araken. Manual da execução. 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 479.

4 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Método, 2010, p. 784.

5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 242. DIDIER JR, Fredie, CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 5 (Execução). 5ª ed. Salvador: 2013, Juspodivm, p. 224.


A crise da Crimeia: paralelo histórico com o início da Segunda Guerra Mundial

3 de março de 2014

Nos últimos dias, a comunidade internacional vê com preocupação a tensão entre Rússia e Ucrânia, pelo controle da região da Crimeia, a qual, nas últimas horas, foi ocupada por efetivos militares russos. Curiosamente, essa situação geopolítica lembra, guardadas as devidas proporções e ressalvados os contextos absolutamente diferentes, a crise de Danzing, ocorrida em 1939, a qual foi o estopim da Segunda Guerra Mundial. Assim, a finalidade deste post é fazer um paralelo histórico entre esses diferentes focos de tensão.

A tensão entre Alemanha e Polônia em 1939

Corredor polones

Após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Alemanha assinou, em 1919, com os países vencedores o Tratado de Versalhes, o qual lhe impôs pesadas sanções militares, econômicas e territoriais. Por força desse acordo internacional, um novo desenho de fronteiras foi definido, implicando na perda de 13% do território alemão. Em particular, causou profundo mal estar a situação da província alemã da Prússia Oriental, que ficou ilhada no meio da Polônia, sem qualquer ligação com o resto da Alemanha. A faixa de terra que separava o Reich e a Prússia Oriental ficou conhecida como “corredor polonês”. Nela, situava-se Danzing, uma importante região portuária alemã, que passou a ser uma cidade internacional livre.

Segundo Gabriel Cardona, “Danzing, cuja maioria da população era de origem alemã, sinalizava uma rivalidade entre a Alemanha e a Polônia. Pelo Tratado de Versalhes, ela era uma cidade internacional livre, cujas relações diplomáticas eram exercidas pela Polônia, mediante um acordo. Era governada por um Senado (com o seu Presidente assumindo o Poder Executivo), Câmara dos Deputados e um alto comissário da Liga das Nações. A Polônia mantinha um comissário geral e tinha uma união aduaneira com a cidade, que era uma zona franca administrada por um Conselho do Porto, com trânsito livre para os barcos e três poloneses.” (Coleção 70º aniversário da Segunda Guerra Mundial, v. 2. São Paulo: Abril Coleções, 2009, p. 02)

As imposições do Tratado de Versalhes serviram de combustível para a ascensão do Partido Nacional Socialista, em janeiro de 1933. Em 1939, Hitler “exigiu a devolução de Danzing, além de uma ferrovia e de uma rodovia extraterritoriais que cruzassem o corredor que separava a Prússia Oriental do resto do Terceiro Reich. Em compensação, ofereceu à Polônia a prorrogação por 25 anos do pacto de não agressão de 1934, bem como a inclusão no Pacto Antikomintern e a garantia de suas fronteiras” (Idem, p. 11).

A Polônia só aceitou a construção da estrada, rejeitando sua extraterritorialidade e a devolução de Danzing. Grupos étnicos alemães em Danzing, cujo Senado era chefiado por um nazista, passaram a não mais respeitar as autoridades aduaneiras e policiais polonesas. A população alemã na cidade aderiu com entusiasmo à proposta de reincorporação ao Terceiro Reich. Iniciou-se um clima de tensão e de provocações que culminaram na invasão germânica em setembro de 1939. Em seguida, eclodiu a Segunda Guerra Mundial, pois a Polônia fizera um pacto de ajuda mútua com a Inglaterra e a França.

A tensão entre Rússia e Ucrânia em 2014

Crimeia

A Crimeia, atual foco de tensão entre Rússia e Ucrânia, foi incorporada ao território ucraniano durante a vigência da União Soviética. Conforme narra ironicamente o jornalista português José Linhazes, “em 1954, Nikita Khrutchov, secretário-geral do Partido Comunista da URSS, decidiu oferecer a Crimeia a Ucrânia, pois era, tal como todos os comunistas, uma pessoa que não acreditava numa das previsões de Fátima, ou seja, que o regime comunista iria ruir um dia”. (In Blog da Rússia)

Com o colapso da União Soviética em 1991, a Ucrânia tornou-se uma república independente, sob a forma de estado unitário, onde a Crimeia tem o status jurídico-constitucional de república autônoma. Desde então, setores políticos ucranianos tentam se aproximar da Europa ocidental, afastando-se da Rússia, de quem sempre teve desconfiança, sobretudo, em razão, da coletivização de propriedades rurais na década de 1930, a qual gerou a morte por fome de milhões de camponeses, no genocídio conhecido por Holodomor. Inclusive, durante o início da invasão alemã em 1941 à URSS, incontáveis ucranianos receberam com festa as forças armadas alemãs e se incorporaram a Waffen SS (hoje tidos como heróis pela extrema-direita ucraniana), embora a população civil tenha sido vítima das atrocidades do regime nazista.

Atualmente, a maioria da população da Criméia é de origem russa. Por conseguinte, rejeita o novo governo nacionalista, pró-ocidente e anti-Rússia instalado em Kiev em fevereiro de 2014, após a “Primavera Ucraniana”. Face os violentos protestos anti-Rússia na maior parte da Ucrânia, a população russa da Crimeia sente-se ameaçada. Embalada por ideais nacionalistas e separatistas, almeja a independência ou retorno à administração moscovita.

Aqui, faz-se o paralelo histórico: Danzing, no ano de 1939, era uma cidade autônoma de maioria étnica alemã, governada por lideranças pró-Hitler, na qual as autoridades polacas foram rejeitadas pela população e as tropas alemãs recebidas com festa. A Crimeia, em 2014, é uma república autônoma, governada por agentes públicos pró-Moscou, onde as autoridades ucranianas são repelidas e as tropas russas ovacionadas pelo povo.

Felizmente, o líder russo Vladimir Putin não é (ainda) Adolf Hitler e a ONU tem (ainda) mais influência apaziguadora que a velha Liga das Nações. Espera-se, pois, que a diplomacia e o bom senso consigam evitar um conflito entre Rússia e Ucrânia, o qual poderia arrastar a OTAN à contenda bélica. É que, em 1994, foi celebrado um pacto entre Estados Unidos, Inglaterra e Ucrânia (Acordo de Bucareste), por meio da qual esta última renunciaria ao seu arsenal nuclear, em troca de apoio à sua integridade territorial.


Retrospectiva de julgados do STJ em 2013 – Processo civil – 2ª Parte

26 de dezembro de 2013

stj1. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE ÓRGÃO JURISDICIONAL E CÂMARA ARBITRAL. É possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral.” (CC 111230-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 8/5/2013, Informativo 522)

COMENTÁRIO: a decisão em tela reveste-se de grande interesse doutrinário, uma vez que assentou que a arbitragem possui natureza jurisdicional. Por conseguinte, é possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. Como consta do próprio julgado, busca-se fortalecer a arbitragem enquanto meio de solução de conflitos.

2. APLICAÇÃO DO ART. 285-A DO CPC E UNIDADE DE ENTENDIMENTO ENTRE INSTÂNCIAS. “Não é possível a aplicação do art. 285-A do CPC quando o entendimento exposto na sentença, apesar de estar em consonância com a jurisprudência do STJ, divergir do entendimento do tribunal de origem.” (REsp 1.225.227-MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/5/2013, Informativo 524)

COMENTÁRIO:  Segundo o art. 285-A do CPC, o juízo, tão logo recebida a petição inicial, poderá dispensar a citação e proferir sentença julgando improcedente o pedido. É o instituto do julgamento imediato (prima facie). Para tanto, a lei exige o preenchimento dos seguintes requisitos: a) matéria controvertida unicamente de direito; b) prolação, no juízo, de sentenças de total improcedência.O problema é quando o juízo profere sentenças dissonantes da jurisprudência do tribunal de segundo grau ou do próprio STJ. Nesses casos, o autor poderá recorrer e o juízo ad quem aplicará a jurisprudência, determinado o retorno do feito à origem, o que provoca sensível atraso. Por isso, segundo o STJ, há que se ter cautela na aplicação do art. 285-C, sendo essencial a existência de harmonia entre as decisões de todas as instâncias. Assim, constrói-se, jurisprudencialmente, um novo requisito para a aplicação do art. 285-A do CPC que é “unidade de entendimento entre a sentença de improcedência, o tribunal local e os tribunais superiores”.

3. APLICABILIDADE DO ART. 739-A DO CPC AOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. Mesmo sendo exigível a penhora para o ajuizamento de embargos à execução fiscal, o processo de execução da dívida ativa somente será suspenso se estiverem presentes os requisitos do art. 739-A do CPC. (REsp 1.272.827-PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/5/2013, Informativo 526.)

COMENTÁRIO: na sistemática original do CPC, a oposição de embargos à execução por quantia certa dependia da existência de penhora ou depósito (“garantia do juízo). Ademais, por força de construção doutrinária e jurisprudencial, o ajuizamento dos embargos automaticamente suspendia o processo de execução. Com o advento da Lei 8.953/1994, o efeito suspensivo automático dos embargos passou a ter previsão expressa. Atualmente, após a reforma dos processos de execução por títulos extrajudicias decorrente da Lei n.º 11.382/2006, duas inovações surgiram no CPC: a) estabeleceu-se que o ajuizamento dos embargos não depende de garantia do juízo (art. 736); b) fixou-se que o efeito suspensivo não é automático, pois depende do fumus boni iuris e do periculum in mora (art. 739-A). O recurso especial em tela discutiu os efeitos dessa reforma no âmbito da execução fiscal. Entendeu-se que, diante da previsão especial do art. 16, § 1º, da Lei n.º 6.830/1980 (LEF), a penhora como requisito dos embargos está mantida nesse procedimento. Contudo, como a LEF é omissa quanto aos efeitos em que são recebidos os embargos, aplica-se, subsidiariamente, o art. 739-A do CPC. Portanto, igualmente nos embargos a execução fiscal a suspensão da execução atacada não ocorre automaticamente.

4. IMPOSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO DA CONCESSÃO DE GRATUIDADE JUDICIÁRIA NOS AUTOS DO PROCESSO PRINCIPAL. É vedada a impugnação à concessão do benefício de assistência judiciária gratuita nos autos do processo principal. Por expressa previsão legal, o incidente deve ocorrer em autos apartados. (EREsp 1.286.262-ES, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 19/6/2013, Informativo 529).

 

COMENTÁRIO: segundo o art. 6º da Lei n. 1.060/1950, a parte que discordar da concessão do benefício da justiça gratuita deve impugná-lo em autos apartados. Com isso, evita-se o tumulto processual e permite-se à parte interessada produzir provas no sentido de que o beneficiário não é economicamente hipossuficiente. No REsp 1.286.262-ES (Informativo 511), entendeu-se que, se a impugnação à concessão do benefício da justiça gratuita ocorrer nos próprios autos principais e não houver prejuízo, a nulidade não deve ser decretada (art. 244 do CPC). Ocorre que, em face desse acórdão, foram opostos embargos de divergência, aos quais se deu provimento, assentando-se que não deve ser apreciado o pedido de revogação de assistência judiciário gratuito formulado nos próprios autos da ação principal.” Na ementa do acórdão, assentou-se que “permitir que o pleito de revogação da assistência judiciária gratuita seja apreciado nos próprios autos da ação principal resulta, além da limitação na produção de provas, em indevido atraso no julgamento do feito principal, o que pode ocasionar prejuízos irremediáveis às partes.”


Retrospectiva 2013 de julgados do STJ – Processo civil – 1ª Parte

26 de dezembro de 2013

O fim de ano chegou e, com ele, o recesso forense. O blog, então, passa a ter a possibilidade de ser atualizado. Nada melhor que uma retrospectiva contendo julgamentos relevantes do Superior Tribunal de Justiça publicados em seus informativos semanais. Assim, selecionamos e comentamos decisões divulgadas em 2013, referentes ao Direito Processual Civil. Trata-se de acórdãos que apresentam interesse doutrinário e relevância prática. Seguem, abaixo, julgados do primeiro semestre de 2013.

1MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar mandados de segurança impetrados contra atos administrativos do Conselho da Justiça Federal. (Rcl 3.495-PE, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgada em 17/12/2012, Informativo 511)

COMENTÁRIO: o julgado baseia-se no fato de que o CJF é órgão integrante da estrutura do próprio STJ (art. 105, parágrafo único, da CF). Assim, tal como as decisões administrativas dos presidentes dos tribunais, os mandados de segurança contra atos administrativos do CJF devem ser julgados pelo STJ. Sob um prisma crítico, pode-se dizer que a interpretação extensiva contida no aresto acabou criando hipótese de competência originária não prevista no texto constitucional.

 

2. ERRO EM SISTEMA DE ACOMPANHAMENTO DE SITE DE TRIBUNAL E JUSTA CAUSA RECURSAL. justa causa no descumprimento de prazo recursal quando o termo inicial é equivocadamente lançado em sistema de acompanhamento processual disponibilizado na internet por tribunal. (REsp 1.324.432-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 17/12/2012, Informativo 513).

COMENTÁRIO: a decisão aplica a norma contida no art. 183 do CPC. Esse dispositivo estabelece a possibilidade de se “devolver” ou se “restituir” o prazo recursal por justa causa. A regra geral é que, escoado o prazo, dá-se a extinção do direito de praticar o ato respectivo. Contudo, se a parte provar que “perdeu o prazo” por justa causa (evento imprevisto, alheio a sua vontade), o juiz assinar-lhe-á novo interstício temporal para realizar o ato. In casu, assentou-se que constituem justa causa, a ensejar a renovação do prazo, informações inverídicas contidas em sistema de acompanhamento disponibilizado em site de tribunal. O entendimento do STJ prestigia a boa-fé objetiva no processo e a confiabilidade das informações contidas em meio eletrônico.

 

3. RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. SISTEMÁTICA DE IMPUGNAÇÃO. DECISÃO QUE SOBRESTA NA ORIGEM E DECISÃO QUE NEGA SEGUIMENTO COM BASE NO ART. 543-C, § 7º, I, DO CPC.

“É irrecorrível o ato do presidente do tribunal de origem que, com fundamento no art. 543-C, § 1º, do CPC, determina a suspensão de recursos especiais enquanto se aguarda o julgamento de outro recurso encaminhado ao STJ como representativo da controvérsia.” (AgRg na Rcl 6.537-RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 27/2/2013, Informativo 515)

É cabível agravo regimental, a ser processado no Tribunal de origem, destinado a impugnar decisão monocrática que nega seguimento a recurso especial com fundamento no art. 543-C, § 7º, I, do CPC.” (RMS 35.441-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 6/12/2012, Informativo 512)

COMENTÁRIO: com a finalidade de racionalizar as atividades do STJ, a Lei n.º 11.672/2008 criou o incidente de sobrestamento de recursos especiais repetitivos, isto é, que apresentam idêntica questão de direito. Evita-se, com isso, julgar centenas ou milhares de recursos iguais. Nesses casos, o Presidente do tribunal de origem admite um ou mais recursos especiais, os quais passam ser “representativos da controvérsia”. Tais recursos são encaminhados ao STJ. Os demais recursos idênticos ficam suspensos até o pronunciamento definitivo daquela corte superior. A primeira decisão antes destacada assenta que a decisão do presidente do tribunal a quo que sobresta um recurso especial é irrecorrível. Por sua vez, após o STJ julgar o especial repetitivo, os demais recursos especiais sobrestados na origem terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça. Em face da decisão monocrática que nega seguimento ao recurso cabe agravo regimental.

4. DESISTÊNCIA DE RECURSO FORMULADA APÓS O JULGAMENTO. “Não é possível a homologação de pedido de desistência de recurso já julgado, pendente apenas de publicação de acórdão.” (AgRg no AgRg no Ag 1.392.645-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/2/2013, Informativo 517)

COMENTÁRIO: o art. 501 do CPC dispõe que “o recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”. Doutrinariamente, a desistência é um ato voluntário de abdicação que ocorre após a interposição do recurso. Enquanto a desistência da ação exige, após o prazo da resposta (art. 267, § 4º, do CPC), a concordância da parte contrária, a desistência de recurso não necessita da aquiescência da parte recorrida, pois, ao fim e ao cabo, a beneficia. É controvertido até que momento é lícita a desistência. No caso concreto, estabeleceu-se que não cabe a desistência após o julgamento do especial. Porém, por vezes, o pedido ocorre antes ou no momento do julgamento, o que causa dúvida quanto à sua legitimidade. No recurso especial, o que orienta a homologação da desistência é a inexistência de interesse público. Assim, em casos envolvendo recursos especiais representativos de controvérsia (art. 543-C do CPC), não cabe desistência (REsp 1102473 / RS – Questão de ordem). E, mesmo em recursos especiais sem essa característica, já se negou o pedido de desistência quando há o interesse público em jogo.

5. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ENSINO A DISTÂNCIA. OBTENÇÃO DE DIPLOMA DE INSTITUIÇÃO SEM REGISTRO NO MEC. “Em se tratando de demanda em que se discute a ausência⁄obstáculo de credenciamento da instituição de ensino superior pelo Ministério da Educação como condição de expedição de diploma aos estudantes, é inegável a presença de interesse jurídico da União, razão pela qual deve a competência ser atribuída à Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal de 1988.” (REsp 1.344.771-PR, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 24/4/2013, Informativo 521).

COMENTÁRIO: no REsp 1.344.771-PR, o STJ proferiu decisão que pode ser submetida a críticas exatamente pelo teor confuso do acórdão. Com efeito, essa corte entendeu que a União pode ser ré e a justiça federal é competente em demanda relacionada à expedição de diploma decorrente de curso no sistema de ensino a distância. Na espécie, pelo que o voto do relator permite concluir, a ação em rito ordinário foi oposta por um estudante perante a justiça federal em face da União, do Estado do Paraná e de uma instituição privada de ensino. A parte autora almejava a expedição de diploma, em razão de a instituição privada não ter registro no Ministério da Educação, na modalidade ensino a distância. O problema do acórdão é que ele não faz ressalva a uma situação parecida. Trata-se dos casos em que a instituição privada sequer tem registro no MEC para ofertar cursos presenciais de graduação e os oferece violando a boa-fé. Nesses casos, admitir a legitimidade da União é um absurdo, pois ela não tem o dom da onipresença para agir preventivamente, por meio do MEC, contra esse tipo de conduta ilícita. Portanto, o precedente somente deve ser aplicado aos casos concretos em que uma entidade devidamente registrada oferece um curso à distância para o qual o órgão competente não expediu o credenciamento.


Reflexão sobre os 25 anos da Constituição da República Federativa do Brasil

5 de outubro de 2013

Acevo câmara

A Constituição brasileira promulgada em 05 de outubro de 1988 completou 25 anos de vigência. O momento é um convite à reflexão.

 Ao longo de sua história, o Estado brasileiro marcou-se por profunda instabilidade política. Em diversos momentos (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), outorgaram-se ou promulgaram-se sucessivas constituições, plasmadas por revoluções, golpes e acordos institucionais. A Constituição de 1988 é uma das mais duradouras. Sua vigência temporal é inferior apenas à das Constituições de 1824 e de 1891.

A Constituição de 1824 perdurou, aproximadamente, por 69 anos. Outorgada por Dom Pedro I, “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos”, a vetusta carta regeu uma dinastia monárquica. Sob o ponto de vista social, permitiu a reprodução de uma sociedade rural, profundamente autoritária e hierarquizada, marcada pelo flagelo da escravidão.

Por sua vez, a Constituição de 1891 durou quase 40 anos e inaugurou a República e o Estado federal. Por meio dela, separaram-se, definitivamente, a Igreja e o Estado e se introduziu o controle de constitucionalidade difuso. Apesar dos avanços, o texto liberal e descentralizador incentivou o coronelismo, a república do “café com leite” e os conflitos sociais decorrentes da urbanização e industrialização do início do século XX.

Diferentemente das Constituições de 1824 e 1891, que muito duraram por serem reflexos do que Lassale denominou fatores reais de poder, a Constituição de 1988, embora deles não tenha se desvencilhado completamente, procurou estabelecer um projeto de sociedade, direcionado para a transformação e inclusão.

De fato, em 05 de outubro de 1988, marcou-se a passagem para um novo momento histórico. Seus antecedentes remontam aos movimentos sociais surgidos na década de oitenta e à resistência política contra regime ditatorial pós-1964. Seu texto orienta-se pelos valores da democracia, do pluralismo e da dignidade humana. Um vasto rol de direitos e garantias fundamentais foi positivado e, ano a ano, enriquecido pela atuação judicial e por novas concepções doutrinárias.

 Na moldura normativa da Lei Fundamental, vieram à luz grupos e setores sociais esquecidos como empregados domésticos (art. 7º, parágrafo único), os garimpeiros (art. 174, § 3º), os índios (art. 231 e 232), os seringueiros (art. 54 do ADCT), os soldados da borracha (art. 54, 1º, do ADCT) e os quilombolas (art. 68 do ADCT). As mulheres passaram a ter igualdade jurídica plena e a família patriarcal matrimonializada deixou de ser a única legitimada, ante o reconhecimento da união estável (art. 226, § 3º) e das uniões homoafetivas (STF, ADC 132 e ADI 4277).

O texto, evidentemente, não é perfeito. Em muitos pontos, é assistemático. Em outros, positiva temas tipicamente infraconstitucionais. Por serem detalhados e específicos, tais dispositivos tendem a ser reformados constantemente, o que, por exemplo, se deu com todo um arcabouço de regras e princípios sobre servidores públicos, regimes de previdência e sistema tributário, que foram objetos das Emendas Constitucionais n.ºs 03, 18, 19, 20, 21, 40, 41, e 47.

Embora também tenha cristalizado privilégios, a atual constituição permitiu um ensaio de autodeterminação da sociedade civil perante o Estado.  Sob o seu manto, haverá de ser superado patrimonialismo, cujos reflexos atuais são a corrupção e a concentração de privilégios em prol de setores estatais e privados.

Os anos vindouros exigem a busca pela força normativa da Constituição, a qual não brota magicamente de seu texto, mas da consciência geral e do compromisso, sobretudo, dos responsáveis pela ordem social e política de que ela, a Constituição, é essencial para evitar o autoritarismo e o poder dos fatos. Essa consciência acerca da importância da lei fundamental é o que Konrad Hesse chamou de “vontade da constituição“. Assim, devem ecoar as palavras de Ulisses Guimarães, proferidas na promulgação da carta em 05 de outubro de 1988:

“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da Democracia.”

De forma otimista, espera-se que a Constituição dure mais 25 anos, refletindo a trajetória de sucesso das Constituições da Itália, Alemanha, Portugal e Espanha. Que as gerações futuras colham os frutos das sementes plantadas pela atual geração.


Caso Escher e outros vs. Brasil (2009)

5 de julho de 2013

CIDH

No presente post, será feito um resumo da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Esher e outros vs. Brasil. O contexto fático do litígio ocorre nos conflitos sociais em prol da reforma agrária no Estado do Paraná. Na decisão da CIDH, analisa-se, sobretudo, o conteúdo do direito à privacidade (no art. 11 do Pacto de São José da Costa Rica), o qual, na espécie, foi violado por decisão judicial brasileira.

O caso perante à República Federativa do Brasil

Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni eram membros da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais – ADECON e da Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda – COANA, as quais mantinham relações com o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, no Estado do Paraná.

No dia 5 de maio de 1999, a Polícia Militar do Paraná requereu ao Juízo de Direito da Comarca de Loanda interceptação e monitoramento de linha telefônica, instalada na sede da COANA. Alegou-se que essa entidade estaria sendo utilizada “pela liderança do MST para práticas delituosas”, tais como o desvio de recursos de financiamentos rurais. Ademais, reputou-se necessária a quebra do sigilo telefônico para a investigação de homicídio.

No mesmo dia, a juíza Elisabeth Khater autorizou a interceptação telefônica, mediante simples despacho à mão “na margem da petição, na qual escreveu ‘R[ecebido] e A[nalisado]. Defiro. Oficie-se. Em 05.05.99′”. O Ministério Público não foi notificado. Novamente, a polícia militar, sem qualquer fundamentação, pediu a interceptação de outra linha telefônica da COANA e de linha da ADECON. Da mesma forma, a decisão de deferimento foi lacônica e o parquet, ignorado.

As gravações vazaram para a Rede Globo e acabaram expostas no Jornal Nacional, na noite de 07/06/1999. No dia seguinte, o Secretário de Segurança Pública do Paraná fez coletiva com a imprensa e expôs parte do conteúdo de algumas conversas.

Um ano depois, os autos foram enviados ao Ministério Público estadual, o qual emitiu parecer com as seguintes conclusões: a) os policiais militares requerentes, além de não terem vínculos com a Comarca, não presidiam qualquer investigação, sendo partes ilegítimas; b) o pedido foi requerido sem qualquer conexão com inquérito ou processo em curso; c) o segundo pedido de interceptação não foi motivado; d) o procedimento de quebra não foi anexado a qualquer processo; e) as decisões judiciais não foram fundamentadas. Ao final, o Ministério Público concluiu que as interceptações tiveram fim exclusivamente político, “em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação”.

Assim, a pedido dos movimentos sociais, o MP enviou notitia criminis ao Tribunal de Justiça em face do ex-secretário, da magistrada e dos militares envolvidos. A investigação criminal foi arquivada por decisão da Corte Especial, a qual ordenou apenas a remessa dos autos ao primeiro grau a fim de se analisar a conduta do ex-secretário, em razão da suposta divulgação ilícita dos diálogos interceptados. Concluída a investigação, foi apresentada denúncia contra a referida autoridade, havendo condenação em primeira instância; contudo, o Tribunal de Justiça a absolveu, sob o fundamento de que não houve quebra, pois os “dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão.”

Em relação à juíza, o procedimento administrativo para apurar falta funcional foi arquivado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça. Em seguida, após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República enviou o caso ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ. O procedimento foi igualmente arquivado, sob a justificativa de que a rejeição da ação penal foi exaustiva, não deixando margem para qualquer processo administrativo.

O caso perante o Sistema Interamericano de Direito Humanos

Inconformadas com o grampo, as organizações Rede Nacional de Advogados Populares e a Justiça Global, em nome dos membros das CONAE e da ADECON, peticionaram, em 26/12/2000, à Comissão Interamaricana de Direitos Humanos, alegando que interceptação telefônica feita pelo Juízo de Direito da Comarca de Loanda violou o direito à privacidade e o Estado Brasileiro não tomou medidas adequadas e efetivas para reparar os danos decorrentes.

Em 20/12/2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou demanda à CIDH, aduzindo que, em razão dos fatos antes descritos, o Brasil violou os seguintes artigos do Pacto de São José da Costa Rica): 8.1 (Garantias Judiciais), 11 (Proteção da Honra e da Dignidade), 16 (Liberdade de Associação) e 25 (Proteção Judicial).

Na Corte, foram apresentadas petições pelas partes e ouvidas diversas testemunhas. A fim de analisar a interceptação telefônica à luz do direito brasileiro, emitiram laudos, como peritos, Luiz Flávio Gomes, o qual foi indicado pela Comissão Interamericana, e Maria Thereza Rocha de Assis Moura, indicada pelo Brasil.

O conteúdo da sentença da CIDH

Em 10 de junho de 2009, foi prolatada a sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.  No mérito, a Corte assentou que “o artigo 11 da Convenção proíbe toda ingerência arbitrária ou abusiva na vida privada das pessoas, enunciando diversos âmbitos da mesma como a vida privada de suas famílias, seus domicílios e suas correspondências.”

Em relação ao art. 11, consta, na sentença, que esse dispositivo convencional “protege as conversas realizadas através das linhas telefônicas instaladas nas residências particulares ou nos escritórios, seja seu conteúdo relacionado a assuntos privados do interlocutor, seja com o negócio ou a atividade profissional que desenvolva”. Estariam albergadas pela proteção à vida privada “qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas.”

Quanto à interceptação telefônica, a CIDH afirmou que essa medida somente se legitima em face da Convenção Americana se cumprir os seguintes requisitos: “a) estar prevista em lei, b) perseguir um fim legítimo; c) ser idônea, necessária e proporcional.” Assim, em verdadeiro controle de convencionalidade, entendeu-se que a Lei n. 9.296/96 está em conformidade com a Convenção. Por conseguinte, considerando que a interceptação realizada em detrimento das vítimas não observou os requisitos do direito interno previstos em tal diploma legal (eis os vícios: ilegitimidade da polícia militar para requerer, ausência de fundamentação na decisão, falta de notificação do MP e ausência de transcrição das fitas), houve violação do Pacto de São José da Costa Rica.

Entendeu-se igualmente que a persecução penal ilegítima violou o princípio da liberdade de associação. Da mesma forma, foi considerada ilegítima, por falta de fundamentação,a decisão em sede administrativa relativa à conduta funcional da juíza que autorizou a interceptação telefônica.”

Ao final, ordenou-se ao Brasil a obrigação de indenizar Arlei J. Escher, Dalton L. de Vargas, Delfino J. Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni. Fixou-se também a obrigação de divulgar a sentença e de investigar os fatos relacionados ao caso.


Caso Apitz Barbera y otros (“Corte Primera de lo Contencioso Administrativo”) vs.Venezuela

2 de julho de 2013

O caso Apitz Barbera y otros vs.Venezuela releva um importante precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual se debateu amplamente o princípio da independência do Poder Judiciário. O pano de fundo diz respeito ao polêmico regime jurídico constitucional bolivariano, o qual tem sido constantemente acusado de agir em desconformidade com o princípio da separação dos poderes.

O caso perante à República Bolivariana da Venezuela

María Ruggeri Cova, Perkins Rocha Contreras e Juan Carlos Apitz Barbera eram juízes da Corte Primera de lo Contencioso Administrativo, na Venezuela. A jurisdição de tal órgão diz respeito ao controle de atos do poder administrativo público, com exceção daqueles que emanam do Presidente da República e seus Ministros. As sentenças da Corte Primeira são passíveis de recurso apenas ao Supremo Tribunal.

A nomeação dos citados magistrados deu-se em caráter provisório no dia 12 de setembro de 2000, mediante ato do Plenário do Supremo Tribunal, que fixou como condição resolutiva a realização de concurso.

Ocorre que, em junho de 2002, os juízes da Primeira Corte do Contencioso Administrativo, ao julgar cautelar de amparo, emitiram sentença invalidando ato administrativo emitido pelo “Registrador Subalterno del Primer Circuito de Registro Público” do Município de Baruta, o qual se negara a registrar uma propriedade. A sentença teria sido altamente criticada pelos altos escalões do Governo.

Em razão dessa sentença, os magistrados passaram por investigação na Inspetoria Geral dos Tribunais – IGT pelo cometimento de suposto “erro inescusável”. Ao final, foram denunciados ao CFRSJ, que é um órgão  judicial criado provisoriamente pela Assembléia Constituinte para proceder ao exame da disciplina dos juízes, enquanto não forem instalados os Tribunais Disciplinares previstos na Constituição Bolivariana da Venezuela, de 15 de dezembro de 1999.

Na denúncia, os juízes foram acusados de ter cometido “erro judicial inescusável”. Em 30 de outubro de 2003, com base nesse fundamento, foi decretada a destituição. Inconformados, recorreram administrativamente e apresentaram pedido de amparo junto ao contencioso administrativo, o qual acabou sendo rejeitado. O recurso administrativo não foi julgado.

O caso perante o Sistema Interamericano de Direito Humanos

A destituição dos magistrados foi objeto de queixa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, por sua vez, demandou a República Bolivariana da Venezuela na Corte Interamericana, imputando-lhe violação aos direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana.

Ao apreciar a demanda, a CIDH assentou que a independência dos juízes deve ser garantida pelo Estado, tanto em seu aspecto institucional, isto é, em relação ao sistema judicial como um todo, e também em relação à pessoa do juiz específico. O objetivo da proteção é evitar que o sistema judicial, em geral, e seus membros, em particular, sejam submetidos a restrições indevidas no exercício de suas funções por parte de órgãos estranhos ao Poder Judicial ou mesmo por parte dos magistrados de tribunais superiores. No caso concreto, entendeu-se que punir magistrados por atos no exercício da jurisdição constitui atentado à independência funcional.

Ademais, observou-se que a CFRSJ não é um órgão dotado de imparcialidade, pois seus membros poderiam ser livremente exonerados pela Suprema Corte. Inclusive, as exceções de impedimento opostas pelos juízes sindicados não foram respondidas. Por fim, concluiu-se que a destituição não foi devidamente fundamentada, pois a decisão teve teor meramente remissivo. Segundo a CIDH, a argumentação da sentença deve mostrar que foram devidamente apreciadas as alegações das partes as provas dos autos, permitindo a possibilidade de crítica e recurso.

Ao final, em sentença de 05 de agosto de 2008, a Venezuela foi condenada a pagar indenização às vítimas e reintegrá-las ao Poder Judiciário, com direito aos salários, benefícios sociais e classificação equivalentes àqueles que corresponderiam ao dia de hoje, se não tivessem sido demitidos.


O caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile (2012)

1 de julho de 2013

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A finalidade deste post é tratar de recente julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o qual versa sobre orientação sexual e direito de guarda de crianças. Juridicamente, o pano de fundo da controvérsia aborda a responsabilidade internacional do Estado por tratamento discriminatório e interferência arbitrária na vida privada e familiar. É o caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, julgado em 2012, o qual representa um julgado riquíssimo.

O processo judicial perante o Poder Judiciário do Chile

 Karen Atala Riffo e Ricardo Jaime López Allendes casaram-se em 29 de março de 1993. Dessa relação, vieram à luz as meninas M., V. e R., nascidas, respectivamente, em 1994, 1998 e 1999. Em 2002, os consortes separam-se de fato, sendo estabelecido o acordo no sentido de que a senhora Atala ficaria com a custódia e cuidados das três meninas na cidade Villarrica, com regime de visita semanal a casa do pai em Temuco.

Ocorre que Atala Riffo iniciou relação homoafetiva com Emma de Ramón. Em novembro de 2002, elas passaram a morar juntas na casa de Atala. Inconformado com essa situação, o pai das meninas ingressou com demanda de custódia no Juizado de Menores de Villarrica, alegando que, por conta do lesbianismo materno, o ambiente familiar se tornara prejudicial ao desenvolvimento emocional das crianças.

Em 2 de maio de 2003, o juizado concedeu a custódia provisória ao pai, regulando as visitas maternas. Contudo, na sentença, que fora proferida por outro juiz, julgou-se improcedente o pedido, sob o fundamento de que a homossexualidade não é doença e que a orientação sexual da ré não representa impedimento para desenvolver a maternidade responsável.

Inconformado, em novembro de 2003, o pai de das meninas interpôs recurso de apelação, alegando que a sentença promoveu uma mudança radical na vida das menores. A Corte de Apelações de Temuco, em 30 de março de 2004, confirmou a sentença por seus próprios fundamentos.

Então, o pai das meninas interpôs queixa junto à Suprema Corte de Justiça do Chile. Ao apreciar o pedido, a quarta turma do órgão judicial máximo chileno proveu, em 31 de maio de 2004, o recurso para dar a custódia definitiva ao recorrente. Assentou o tribunal que a regra segundo a qual os filhos devem ficar sob a guarda da mãe não é absoluta, comportando relativização no caso concreto. Por isso, considerando o fato de que a orientação sexual materna poderia expor as filhas à discriminação e lhes causar confusão psicológica, a melhor solução seria mantê-las sob os cuidados paternos, no âmbito de uma família tradicional.

O processo perante o Sistema Interamericano

Ao julgar o caso,  a Corte entendeu que a decisão da justiça chilena violou diversas normas do Pacto de São José da Costa Rica.

De início, constatou-se que foram transgredidos os princípios da igualdade e da não discriminação previstos no artigo 1.1 do Pacto de São José da Costa Rica, os quais, por conta da expressão “outra condição social”, protegem a orientação sexual e a identidade de gênero. Nessa senda, a corte internacional assentou que a presunção de tratamento social discriminatório não poderia ser utilizada como fundamento para a restrição de direitos. Se a sociedade é intolerante, não cabe ao Estado sê-lo, razão por que só lhe resta adotar medidas para combater o preconceito em razão da orientação sexual.

Quanto à presunção de dano psicológico às crianças, entendeu a CIDH que a Suprema Corte chilena adotou uma análise in abstracto do suposto impacto da orientação sexual da mãe no desenvolvimento das meninas, não tendo sido apresentadas provas concretas de dano real e imediato. Por fim, entendeu-se que o Pacto de São José da Costa Rica não adota um conceito fechado e tradicional de família fundada no matrimônio. Inclusive, rechaçaram-se excertos da sentença da Suprema Corte do Chile, os quais estariam a albergar um conceito limitado e estereotipado de família (“família estruturada normalmente e respeitada na sociedade”).

Outro princípio fundamental vulnerado pela decisão judicial chilena foi o da proteção da vida privada dos indivíduos (art. 11 do Pacto). O tribunal internacional observou que a vida privada é um conceito amplo que não pode ser definido de forma exaustiva. Seu âmbito de proteção inclui a vida sexual e o direito de estabelecer e desenvolver relações com outros seres humanos.

Também não passou desapercebida pela corte uma violação às garantias processuais. Com efeito, na visão da CIDH, a sentença da Corte Suprema de Justiça não deu às crianças o direito de serem ouvidas consagrado no artigo 8.1, combinado com  os artigos 19 e 1.1 da Convenção Americana.

Na conclusão da sentença, a Corte Interamericana não agiu como quarta instância a fim de reformar a decisão da justiça chilena. A sentença foi puramente reparatória, estabelecendo um conjunto de obrigações a serem cumpridas pelo Chile: i) prestar assistência médica e acesso psicológico ou psiquiátrico e imediata, adequada e eficaz, através de suas instituições especializadas públicas de saúde às vítimas que o solicitem; ii) publicar o resumo do julgamento, por uma vez, no Diário Oficial e em jornal de circulação nacional, divulgando o inteiro teor no site oficial; iii) realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional para os fatos do presente caso; iv) continuar a implementar, dentro de um prazo razoável, programas permanentes e cursos de educação e formação para os funcionários públicos regionais e nacional e, particularmente, para servidores de todas as áreas e escalões do Judiciário; v) pagar determinadas quantias a título de compensação por danos materiais e morais e reembolso de custos e despesas, conforme o caso.


Duplo grau de jurisdição: precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos

30 de junho de 2013

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê, em seu Artigo 8º, um vasto rol de garantias judiciais.  No item II, alínea “h”, desse dispositivo convencional encontra-se previsto o princípio do duplo grau de jurisdição, nos seguintes termos:

“2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

 O exame de casos relacionados ao duplo grau de jurisdição não ocorre por acaso. A razão de ser é mostrar que as práticas judiciais e ensinamentos doutrinários majoritários do Brasil encontram-se na contramão do entendimento da Corte Interamericana.

 Em relação ao duplo grau de jurisdição, importantes precedentes foram produzidos pela Corte, destacando-se as sentenças proferidas nos seguintes casos: a) Herrara Ulloa versus Costa Rica; b) Mohamed versus Argentina.

 Herrara Ulloa versus Costa Rica (2004)

 Em 12 de novembro de 1999, o Tribunal Penal do Primeiro Circuito Judicial de São José (Costa Rica) condenou o jornalista Mauricio Herrera Ulloa pelo crime de difamação, em razão de artigos publicados no periódico “La Nación”, os quais teriam ofendido a honra do diplomata Félix Prezedborski, que era representante daquele país na Organização de Energia Atômica da Áustria. Os artigos supostamente ofensivos de Ulloa foram escritos com base em notícias divulgadas na Bélgica acerca de escândalo, envolvendo Prezedborski. Contudo, a justiça da Costa Rica ordenou Ulloa ao pagamento de indenização. Como efeito secundário, o nome do jornalista foi lançado no registro judicial de delinqüentes.

 O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, por sua vez, encaminhou demanda à Corte em janeiro de 2003, alegando que o Estado da Costa Rica, por meio da referida decisão judicial, violou o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, o qual prevê o direito à liberdade de pensamento e expressão, bem como o artigo 8º, que trata das garantias judiciais.

 Ao julgar a demanda em 2004, a Corte assentou que, de fato, a Costa Rica violou a liberdade e pensamento e expressão, a qual representa o direito de expressar o próprio pensamento e a liberdade de buscar, receber e difundir o pensamento, sobretudo, envolvendo fatos relacionados a funcionário no exercício da função pública. Ademais, entendeu-se que, como o julgamento fora realizado em instância única, violou-se o duplo grau de jurisdição. Nesse ponto, entendeu-se que é direito de todo condenado recorrer a um tribunal superior formado por juízes imparciais, em que seja possível a ampla revisão dos fundamentos fáticos e jurídicos que embasam a condenação.

 Ao final, a sentença da Corte impôs as seguintes disposições contra a Costa Rica: a) tornar sem efeito a sentença prolatada em 12 de novembro de 1999; b) adequar o ordenamento interno ao disposto no artigo 8.2.h da Convenção Americana (duplo grau de jurisdição); c) Pagar a Mauricio Herrera Ulloa, a título de dano moral, US$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos de América).

 Caso Mohamed versus Argentina(2012)

 Em razão de atropelamento ocorrido em março de 1992, a promotoria argentina (Fiscal Nacional de Primera Instancia) ofereceu denúncia em face do motorista profissional Oscar Alberto Mohamed, dando-o como incurso nas penas do crime de homicídio culposo. Ao final, o juízo de primeiro grau, em 30 de agosto de 1994, absolveu o réu. Ocorre que o caso foi levado a segunda instância (Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional), a qual decidiu reformar a sentença, condenando o réu. Em face dessa decisão somente seria possível um recurso de natureza extraordinária (recurso extraodinario federal), cuja natureza não permite que as partes suscitem ao tribunal superior a nova valoração das provas e das questões de fato. O réu ainda recorreu extraordinariamente; porém, o recurso foi considerado inadmissível.

O caso foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, em 13 de abril de 2011, demandou a República Argentina por violação ao artigo 8.2.h do Pacto de São José da Costa Rica. Aduziu-se que o direito processo penal argentino não permitiu que a condenação em segundo grau de jurisdição fosse revista, de forma ampla e aprofundada, pelo tribunal superior.

Ao final, o argumento de violação ao artigo 8.2.h foi integralmente acolhido.  Entendeu-se que o art. 8.2.h refere-se a um recurso ordinário acessível e eficaz, que deve ser garantido antes que a sentença penal condenatória transite em julgado. Impõe-se à República Argentina a obrigação de adotar as medidas necessárias para garantir a Oscar Alberto Mohamed o direito de recorrer da condenação emitida pela Sala Primera de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional de 22 de fevereiro de 1995, em conformidade com os parâmetros convencionais do Articulo 8.2.h da Convenção Americana.


Curso sobre Controle de Convencionalidade e Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.

29 de junho de 2013

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Entre os dias 25 a 29 de junho de 2013, foi realizado em João Pessoa, Paraíba, curso sobre Controle de Convencionalidade e Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH. O evento decorreu de parceria entre o Ministério da Justiça e a Corte Interamericana, com apoio de órgãos públicos e entidades ligadas à proteção dos direitos humanos.

A finalidade precípua do curso foi divulgar, no Brasil, a jurisprudência da Corte Interamericana, mediante palestras de juristas nacionais e internacionais especializados no assunto, com vistas à capacitação sobre o Sistema Interamericano de Direito Humanos.

Temas como garantias processuais, proteção judicial, reparações, povos indígenas, migração e refúgio, justiça de transição, entre outros, foram tratados com profundidade para uma platéia formada por juízes, advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público, professores e estudantes.

Para a maioria dos brasileiros que participaram do evento, ficou evidente que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui riquíssima jurisprudência, formada a partir de casos paradigmáticos dos mais diversos países do continente.

Desafortunadamente, esses precedentes são completamente desconhecidos para a maioria dos operadores jurídicos pátrios, o que se confirma pela escassez de decisões e petições que citem dispositivos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e sentenças da Corte. Em terras tupiniquins, as decisões do Tribunal Constitucional alemão ou da Suprema Corte norte-americana são mais populares que os arestos da CIDH, o que demonstra uma tendência, enraizada na cultura jurídica pátria, de esquecimento do rico universo jurídico da América Latina.

A estrutura do curso foi a mesma utilizada para a capacitação dos Defensores Públicos Interamericanos. Desde 2009, o Regulamento da CIDH permite, após a admissão da demanda, que as supostas vítimas ou representantes credenciados apresentem petições, argumentos e provas durante todo o processo. Sendo pessoas socialmente vulneráveis, as supostas vítimas poderão valer-se do corpo de 15 Defensores Públicos Interamericanos, disponibilizados em razão de convênio celebrado entre a Corte Interamericana de Direitos e a Associação Interamericana de Direitos Humanos – AIDEF.

Na próxima postagem, serão apresentados alguns casos levados à CIDH e discutidos no curso de que trata este post. Desde já, fica o incentivo para que todos passem a ter um novo olhar em relação à jurisprudência da Corte Interamericana.


Palestras jurídicas para ver e refletir

18 de fevereiro de 2013

Neste post, selecionamos três palestras de professores renomados contendo abordagens críticas de temas jurídicos atuais. Trata-se de exposições de ideias que fogem dos “clichês” e do senso comum vendidos nos cursos jurídicos e nos manuais doutrinários brasileiros. Espero que esses materiais estimulem a reflexão crítica dos leitores e a pesquisa por outros videos de igual conteúdo existentes no youtube.

1.O mito do processo penal. Nessa palestra, o magistrado do TJRJ e doutor em direito Rubens Casara denuncia mitos autoritários que dificultam ou impedem a contenção do poder punitivo estatal. Os mitos são entendidos como elementos do discurso que se apresentam como verdades para preencher vazios dogmáticos e dar coerência às ciências. No processo penal, os mitos funcionam como crenças de viés autoritário assimiladas sem qualquer quetionamento crítico pela doutrina e jurisprudência. São citados como mitos as funções preventiva e ressocializadora das penas, a neutralidade do juiz, a imparcialidade do órgão acusador, a verdade real e o livre convenvimento motivado.

2.Metodologia do novo CPC. Em sua exposição temática, o professor Fredie Didier discute as premissas metodológicas que nortearam a elaboração do projeto de lei que institui um novo Código de Processo Civil. Salienta, de forma crítica, que os dois fundamentos do projeto – a normatividade dos princípios e a vinculanção aos precedentes – não estão devidamente assimilados pela cultura jurídica brasileira, o que dá margem a conclusão de que, caso aprovado, o novo CPC não será aplicado de forma adequada.

3. A constituição simbólica revisitada. O renomado e original constitucionalista Marcelo Neves discorre sobre a normatização simbólica. Segundo esse jurista, esse fenômeno se expressa na produção legislativa de textos legais e constitucionais cuja finalidade não é reger as relações sociais com força cogente, mas criar uma sensação de que temas de clamor social estão recebendo a atenção dos poderes públicos. Nos países periféricos, representam essa realidade simbólica constituições elaboradas após a queda de regimes autoritários, dotadas de vastos rols de direitos e garantias, mas que são sistematicamente descumpridas e ignoradas por seus destinatários.


Retrospectiva 2012 dos Informativos do STJ: Civil e Processo civil

25 de dezembro de 2012

STJ

O ano está terminando. Por isso, brindamos os leitores do blog com resumo das principais julgados de Direito Civil e Processual Civil divulgados nos Informativos de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em 2012. Tal qual na postagem anterior, os precedentes compilados foram resumidos, para deles se extrair somente as razões de decidir dos acórdãos. Na maior parte dos textos, a redação é completamente diferente da escrita dos informativos, exatamente para permitir uma compreensão rápida e objetiva dos casos.  Sempre que o texto original era dúbio, procedeu-se à leitura do acórdão, afinal, os informativos são fontes secundárias, contendo, muitas vezes,  imprecisões.

DIREITO CIVIL

DANO MORAL. ESPERA EM FILA DE BANCO. A violação do tempo máximo fixado em lei para atendimento bancário, por si só, não gera indenização por danos morais, devendo existir circunstâncias que aumentam o sofrimento do cliente. Assim, tem direito à indenização pessoa acometida por doença, que, em pé, esperou em demasia o atendimento. O quantum indenizatório foi fixado em R$ 3 mil. (REsp 1.218.497-MT, Info504).

ACRÉSCIMO DE SOBRENOME DO CÔNJUGE APÓS A CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO. Após a celebração do casamento, é permitido aos cônjuges incluir ao seu nome o sobrenome do outro, desde que o façam por meio de ação de retificação de registros públicos, nos termos dos arts. 57 e 109 da Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/1973). (REsp 910.094-SC, Info503)

RESPONSABILIDADE CIVIL. PROVEDOR. Responde solidariamente por omissão o provedor de internet que, ciente da ofensa em rede social, não a retira no prazo de 24 horas após ser formalmente notificado. (REsp 1.323.754-RJ, Info500)

FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. Pagas 30 das 36 parcelas de arrendamento mercantil (leasing) de 135 carretas, o princípio da função social do contrato, na vertente do adimplemento substancial, limita o direito de o credor extinguir o contrato. (REsp 1.200.105-AM, Info500)

USUCAPIÃO. PROMITENTE COMPRADOR. POSSE INCONTESTADA. A promessa de compra e venda é justo título apto a induzir boa-fé em ação de usucapião originária. O termo “posse incontestada” corresponde às causas interruptivas da prescrição aquisitiva, a exemplo da citação do possuidor em demanda em face dele ajuizada. Por isso, é inconteste a posse quando credor hipotecário ajuíza execução em face do proprietário, omitindo-se em relação ao possuidor (REsp 941.464-SC, Info496)

DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. O abandono afetivo, decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar do filho, caracteriza dano moral indenizável, que, no caso, foi fixado em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). (REsp 1.159.242-SP, Info496)

PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA. Mesmo que o exame de DNA revele a inexistência de vínculo genético, julga-se improcedente a ação negatória de paternidade interposta por aquele que agiu como pai por mais de trinta anos. (REsp 1.059.214-RS, Info491)

 PROCESSO CIVIL

AÇÃO RESCISÓRIA. Sentença de mérito em contrariedade à súmula não pode ser objeto de ação rescisória com base no art. 485, V, do CPC. (AR 4.112-SC, Info510)

RECLAMAÇÃO. DECISÃO DE TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. Como o art. 18 da Lei n. 12.153/2009 prevê “pedido de uniformização de interpretação de lei quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais sobre questões de direito material”, não é cabível a reclamação de que trata a Resolução n.º 12/2009 contra decisão de Turma Recursal de juizado especial da fazenda pública que contrariar súmula do STJ ou orientação desse tribunal em recurso repetitivo. (Rcl 7.117-RS, Info509)

MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. ATUAÇÃO NO STJ. Por força do princípio federativo e da autonomia que lhes é constitucionalmente assegurada, os Ministérios Públicos estaduais podem atuar junto ao STJ recorrendo em feitos iniciados na justiça estadual ou demandando originariamente ações ou incidentes processuais. (AREsp 194.892-RJ, Info507)

EMBARGOS INFRINGENTES. TEORIA DA ASSERÇÃO. Cabem embargos infringentes contra acórdão não-unânime que, reformando sentença em grau de apelação, extingue o processo sem resolução de mérito, mediante cognição profunda da legitimidade passiva. (REsp 1.157.383-RS, Info502)

MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES. Não viola o princípio da motivação das decisões judiciais acórdão cuja fundamentação limita-se a copiar trechos de peças das partes, do órgão do Ministério Público ou de outras decisões proferidas no processo. (EREsp 1.021.851-SP, maioria,Info500)

AGRAVO. INSTRUMENTO. PEÇAS FACULTATIVAS. A ausência de peças facultativas no agravo de instrumento (art. 525, II, do CPC) não enseja a inadmissão liminar do recurso, devendo ser oportunizada ao agravante a complementação do instrumento. (REsp 1.102.467-RJRepetitivo, Info496)

EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. COISA JULGADA. Questão suscitada em embargos à execução e decidida em sentença transitada em julgado não mais pode ser ventilada em exceção de pré-executividade, sob pena de violação à coisa julgada (REsp 798.154-PR, Info495)

RECURSO ESPECIAL. ACÓRDÃO SOBRE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. Cabe recurso especial contra acórdão que nega, confirma ou concede tutela antecipada, desde que a discussão se limite à abrangência do art. 273 do CPC ou ao controle da legitimidade das liminares, vedado o reexame fático. (REsp 1.125.661-DF, maioria, Info494)

EMENDA À INICIAL. PRAZO DILATÓRIO. O prazo de 10 dias para emendar à inicial (284 do CPC) é dilatório, podendo o juiz reduzi-lo ou ampliá-lo, nos termos do art. 181. (REsp 1.133.689-PE – Repetitivo, Info494)

EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. “Não é cabível a condenação em honorários advocatícios em exceção de pré-executividade julgada improcedente.” (REsp 1.256.724-RS, Info490)

CHAMAMENTO AO PROCESSO DA UNIÃO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. Iniciado o processo visando ao fornecimento de medicamentos na justiça estadual, não cabe chamar ao feito a União, pois, além de ser medida protelatória a intervenção, o art. 77, III, do CPC destina-se às obrigações de pagar, não englobando as obrigações de fazer. (REsp 1.009.947-SC, Info490)


Resumo do Informativo 481 do STJ

24 de dezembro de 2012

 No presente post, há um resumo dos principais julgados do Informativo n. 481 do Superior Tribunal de Justiça. Apesar de a publicação se referir a julgados proferidos pela Corte entre 15 e 26 de agosto de 2011, esse informativo é especial. Nele, constam decisões de grande importância no mundo jurídico, cujo conteúdo interessa não apenas aos estudantes de Ciências Jurídicas, como também aos operadores do Direito.  Trata-se, na realidade, de uma espécie de ensaio, pois, num projeto ousado, faremos nos próximos dias retrospectiva com resumo dos principais informativos de jurisprudência do STJ em 2012.

DIREITO CIVIL

PRESCRIÇÃO. COTAS CONDOMINIAIS. O crédito condominial, sob a vigência do CC/1916 prescrevia em 20 anos (art. 177), mas, após o CC/2002, sujeita-se ao prazo prescricional de 5 anos (art. 206, § 5º, I), observada a regra de transição do art. 2.028 (REsp 1.139.030-RJ).

RESPONSABILIDADE CIVIL. GOOGLE. Provedor de internet só responde civilmente, caso, ciente de ofensas a terceiro, não as exclua imediatamente (REsp 1186616)

RESPONSABILIDADE CIVIL. BANCOS. Em razão do risco do empreendimento, é objetiva a responsabilidade civil das instituições bancárias pelos danos morais e materiais que terceiros deram causa mediante abertura fraudulenta de conta-corrente. (REsp 1.199.782-PR)

PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. Em ação declaratória de paternidade, não tem legitimidade ativa o “pai biológico” que se omite, consentindo que o bebê a que deu causa seja criado por mais de três anos pelo “pai  afetivo”, cujo nome consta na certidão de nascimento (REsp 1.087.163-RJ)

 DIREITO PROCESSUAL CIVIL

JULGAMENTO “PRIMA FACIE”. A aplicação do art. 285-A do CPC dispensa a juntada aos autos cópias de sentenças anteriores, bastando que o juiz a elas faça referência na fundamentação do decisium (REsp 1.086.991-MG)

ASTREINTE. A multa coertiva pode ser revista, mesmo após o trânsito em julgado, sem que se viole a coisa julgada (REsp 1.239.714-RJ)

DIREITO ADMINISTRATIVO

CONCURSO PÚBLICO. Ainda que o edital de concurso público não preveja número de vagas, candidato aprovado em primeiro lugar tem direito à nomeação no cargo público ao qual concorreu.

SISTEMA DE COTAS. Estudante que cursou séries do ensino médio com bolsa integral pode concorrer em vaga destinada às cotas de alunos egressos da rede pública. (REsp 1.254.118-RS)

REMUNERAÇÃO. DESCONTOS EM FOLHA. Decreto estadual não pode autorizar descontos facultativos superiores a 30% da remuneração de servidor, sob pena de comprometer sua existência digna (REsp 1.169.334-RS)

 DIREITO PENAL

APLICAÇÃO DA PENA. Curso superior e cargo público relevante aumentam a culpabilidade na fixação da pena base de crime contra a fé pública (HC 194.326-RS)

FURTO. Admite-se o furto qualificado privilegiado, se as circunstâncias qualificadoras forem objetivas e não houver gravidade no fato (EREsp 842.425-RS)

FURTO. No crime de furto, a qualificadora “rompimento de obstáculo” exige comprovação mediante perícia. A prova exclusivamente testemunhal somente pode ser usada pela acusação se não mais houver vestígios. (HC 207588-DF)

TRÁFICO DE DROGAS. Para que incida a causa de aumento do art. 40, V, da Lei n. 11.343/2006 (tráfico interestadual de drogas), não é necessária a efetiva transposição da fronteira, bastando que as provas evidenciem que a droga transportada destinava-se à localidade de outro estado da Federação. (HC 109.724-MS)


Especial Execução Fiscal – 3ª Parte – A exceção de pré-executividade

1 de dezembro de 2012

Na terceira parte deste especial sobre execuções fiscais, será abordado o instituto da exceção de pré-executividade.

Em qualquer execução de título extrajudicial, o palco privilegiado para a defesa do executado são os embargos. Trata-se de uma ação autônoma de impugnação geradora de um processo incidental de conhecimento, na qual o devedor pode amplamente alegadar matérias de fato e de direito com o fim de desconstituir a execução.

Na execução por quantia certa de títulos extrajudiciais regida pelo CPC, tão logo o devedor é citado, surgem duas possibilidades: cumprir a obrigação em três dias ou aforar embargos no prazo de 15 dias. Na execução fiscal, o executado é citado para pagar ou fazer depósito da quantia cobrada no prazo de cinco dias, sendo que, por conta da regra especial do art. 16, § 1º, da Lei n.º 6.830/1980, a oposição de embargos só pode ser feita, caso o juízo esteja garantido, mediante penhora ou depósito.

 Em razão da exigência de garantia do juízo, exsurge um outro instrumento de defesa do executado importantíssimo na execução fiscal: a exceção de pré-executividade. Cuida-se de simples petição por meio da qual são arguidos pelo devedor, nos autos da própria execução, matérias apreciáveis de ofício pelo juiz, a qualquer tempo e grau de jurisdição,a saber: a) defesas referentes à observância do princípio do menor sacrifício do devedor; b) defesas atinentes à admissibilidade da própria execução, com destaque para a ausência de pressupostos processuais, de condições da ação ou da liquidez, certeza e exigibilidade do título executivo; c) defesas referentes à nulidade absoluta de atos do procedimento executivo1; d) prescrição e decadência (STJ, AgRg no REsp 10376/SE, DJe 17/09/2012)

A exceção de pré-executividade tem uma grande vantagem, pois não está sujeita a prazos. Por isso, antes ou após o término do prazo dos embargos, podem surgir situações em que o devedor necessita fazer valer o direito de defesa, sendo a exceção o melhor caminho para ventilar matérias de ordem pública. Aliás, o fato de a exceção poder ser utilizada após o prazo dos embargos é o que garante sua sobrevivência na execução de títulos extrajudicias regida pelo CPC mesmo após a reforma da Lei n.º 11.382/2006.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, é pacífica a possibilidade da  arguição de temas exclusivamente de direito por meio da exceção de pré-executividade, desde que desnecessária a dilação probatória. Esse é o teor da Súmula n. 393: “A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória.” 

Observe-se que, à luz dessa súmula, dois são os requisitos para o manejo da exceção: a) ser a matéria de ordem pública (temas que o juiz pode conhecer independentemente da iniciativa das partes); b) não depender de dilação probatória (a matéria deve ser provada documentalmente de plano, não podendo haver perícia ou oitiva de testemunhas).

Por fim, caso o resultado do julgamento da exceção seja a extinção do processo executivo, o recurso cabível será a apelação; contudo, na hipótese de a exceção ser rejeitada ou parcialmente acolhida, será adequado o manejo do agravo de instrumento. Registre-se que o acolhimento, ainda que parcial da exceção, sujeitará o exequente ao pagamento de honorários sucumbenciais (STJ, EDcl no AgRg no REsp 1319947 / SC, DJe 14/11/2012).

1WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 476.


Especial Execução Fiscal – 2ª parte: a citação do devedor

2 de novembro de 2012

A citação é o ato processual, cuja finalidade é comunicar ao sujeito passivo da relação processual que, em face dele, foi proposta uma demanda.

No processo de conhecimento, a citação, além de ser uma comunicação formal, concretiza a ampla defesa, permitindo ao réu, se assim o desejar, apresentar contestação, exceções (incompetência relativa, suspeição e impedimento), reconvenção ou impugnação ao valor da causa. Por sua vez, na execução, a citação tradicionalmente comunica ao devedor a existência de uma demanda, mas não  lhe abre prazo para a defesa, mas sim para cumprir a obrigação contida no título executivo.

Atualmente, é verdade, a citação no processo executivo, tende a se tornar não apenas um convite ao pagamento, mas um instrumento em prol da defesa do executado. De fato, nas execuções de títulos extrajudiciais, por força da Lei n.º 11.382/2006, a citação abre ao devedor duas importantes faculdades: a) pagar no prazo de 3 (três) dias, o que importará na extinção do feito; b) embargar no prazo de 15 (quinze) dias. Na execução fiscal, contudo, a citação não se presta à ampla defesa. Trata-se da derradeira oportunidade de o devedor pagar a dívida, sendo de 5 (cinco) dias o prazo.   

A citação na execução fiscal caracteriza-se por um certo informalismo, sendo feita, em regra, por meio do envio de carta com aviso de recebimento destinada ao devedor. Dizemos “em regra”, pois se faculta ao credor exigir que a citação seja feita pessoalmente, por meio de oficial de justiça (art. 8º, inciso I, in fine, da Lei n. 6.830/1980). Na execução de títulos extrajudiciais regida pelo CPC, a citação é um ato solene, sendo feita por oficial de justiça, vedada a citação postal (arts. 222, alínea d, e 224).

A grande controvérsia diz respeito à citação por edital na execução fiscal.  Como visto, a citação preferencialmente ocorre mediante a expedição de carta com AR. Caso a citação postal reste frustrada (ausência de retorno no prazo de 15 dias da entrega da carta à agência postal), o inciso III do art. 8º da Lei n.º 6.830/1980  estabelece que “a citação será feita por oficial de justiça ou por edital”.

Para muitos, o art. 8º, inciso III, in fine, da Lei de Execução Fiscal criou uma faculdade para o Estado-Juiz, no sentido de escolher se o executado será citado por edital ou por oficial de justiça. Assim, se o AR voltar sem a assinatura do devedor por ele não ter sido localizado, o credor poderia requere ao juiz, desde já, a citação por edital.

Na realidade, interpretando-se o dispositivo conforme os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, da CF), a conclusão a que se chega é que, caso frustrada a citação por correio, o ato citatório a cargo do meirinho deve ter preferência, eis que a citação por edital é uma modalidade ficta ou presumida com inquestionável natureza residual. Por isso, o STJ editou a Súmula n.º 414, verbis: A citação por edital na execução fiscal é cabível quando frustradas as demais modalidades.”

Observe-se que o conteúdo da Súmula n.º 414 não deixa dúvidas: caso frustrada a citação por correio, antes de o sujeito passivo ser citado por edital, é imprescindível tentar citá-lo pessoalmente por meio de oficial de justiça.


Especial Execução Fiscal – 1ª parte: introdução

2 de novembro de 2012

A partir de hoje, terá início neste blog uma série de postagens relacionadas ao tema execução fiscal. Serão analisados aspectos técnico-jurídicos desse assunto, relacionados à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Este “especial” justifica-se em razão dos números. Em agosto de 2007, o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria da Reforma do Judiciário, lançou o “Estudo sobre Execuções Fiscais no Brasil”, no qual se constatou que mais de 50% dos processos em curso no Poder Judiciário eram execuções fiscais, o que representa um quantitativo de feitos gigantesco. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça, no Relatório “Justiça em Números” de 2010, calculou que dos 86,6 milhões de processos que tramitavam em 2009 26,9%¨eram execuções fiscais, ou seja, um terço do total.

Apesar da divergência entre os estudos do Ministério da Justiça e do CNJ, um fato é indiscutível: no Brasil, há uma quantidade assombrosa de processos de execuções fiscais. Qualquer profissional do direito, portanto, tem grande probabilidade de lidar com execuções fiscais, razão por que urge ter conhecimento sobre o assunto. Mas o que é uma execução fiscal?

Execução, em sentido amplo, é um conjunto de atos materiais e, às vezes decisórios, cuja finalidade é satisfazer uma obrigação contida num título executivo. Por meio da execução, o Poder Judiciário força (coação) o devedor a dar, fazer ou não fazer algo em prol de um credor ou expropria ou desapossa bens para satisfazer uma dívida (sub-rogação).

Diante do caráter invasivo da execução, esse procedimento somente tem cabimento se houver um alto grau de certeza do direito. Por isso, é pressuposto da execução a existência de um título denominado “executivo”, que pode ser, por exemplo, uma sentença (título executivo judicial) ou um cheque, uma duplicata ou um contrato assinado por duas testemunhas  (título executivo extrajudicial).

Nesse contexto, a execução fiscal é um processo executivo especial, regido pela Lei n.º 6.830, de 22 de setembro de 1980. Sua finalidade é a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública (créditos tributários ou não da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal, bem como de seus autarquias e fundações). A dívida ativa tributária refere-se aos créditos oriundos de tributos não pagos no tempo correto. Aqui, entram, por exemplo, as dívidas de IPTU que muitos proprietários de imóveis têm em relação ao Município em que moram ou os valores do imposto de renda devidos à União. A dívida ativa tributária refere-se a créditos decorrentes de obrigações não tributárias, como por exemplo, as multas de trânsito.

O título executivo que embasa a  execução fiscal é a certidão de dívida ativa – CDA, que nada mais é que um título executivo extrajudicial formado a partir de um processo administrativo prévio, no qual se verifica a existência de um crédito em favor do Poder Público. Ao contrário dos demais títulos executivos extrajudiciais, a CDA dispensa a aquiescência ou aceitação do devedor, sendo emitido unilateralmente pelo credor, o que se justifica em razão da presunção de legitimidade dos atos administrativos.


Concursos públicos militares e limites de idade (atualizado nos termos das Leis n.º 12.464/2011, n.º 12.704/2012 e n.º12.705/2012)

9 de setembro de 2012

Durante muitos anos, nenhuma lei federal fixou limites máximos de idade para o ingresso de brasileiros nas Forças Armadas. Na realidade, as limitações etárias previstas nos concursos castrenses eram fruto de resoluções ou portarias do Exército, da Marinha ou Aeronáutica. Essa postura antijurídica das Três Armas baseava-se no art. 10 da Lei n. 6.880/1980 (Estatuto dos Militares). De acordo com esse dispositivo, não apenas a lei mas os regulamentos militares (atos normativos inferiores) poderiam fixar requisitos de ingressos em cargos públicos.

Na realidade, quando uma portaria ou um edital de processo seletivo fixam restrições de idade para acesso a cargos públicos, materializa-se violação ao art. 37, caput, inciso I, da Constituição da República e ao art. 142, § 3º, inciso X, dispositivos esses que consagram o princípios da legalidade na fixação de requisitos para o acesso a cargos e funções públicas civis e militares. Realmente, o art. 10 do Estatuto dos Militares viola, de forma direta e imediata, o princípio da legalidade. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “A legalidade na Administração não se resume a ausência de oposição à lei, mas pressupõe autorização dela, como condição de sua ação.”

Diante do prejuízo sofrido, muitas pessoas questionaram no Poder Judiciário os limites de idade previstos nos editais de concursos militares. O tema chegou até o Supremo Tribunal Federal, o qual, em 09/02/2011, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 600.885/RS, dotado de repercussão geral, assentou que a expressão “nos regulamentos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica” do art. 10 da Lei n. 6.880/1980 não foi recepcionada pela atual Constituição da República, o que impede esses atos administrativos das Forças Armadas de estabelecer critérios de idade máxima no ingresso de brasileiros no âmbito castrense.

É certo que, por força do princípio da segurança jurídica, houve a modulação de efeitos do decisium, para preservarem-se válidas as limitações etárias feitas por meio de editais e regulamentos até 31 de dezembro de 2011. Em embargos de declaração opostos pela União, o Plenário do STF, em 29/06/2012, prorrogou o prazo até 31/12/2012 e estabeleceu que estariam resguardados os candidatos prejudicados que ingressaram em juízo antes do julgamento do RE 600.885/RS  (Informativo STF 672). Assim, após 31/12/2012, as limitações etárias somente poderão decorrer de lei.

Diante da decisão do STF e dentro do prazo fixado na modulação de efeitos, o Congresso Nacional fechou a lacuna legislativa, saneando o problema. Com efeito, por meio da Lei n.º 12.464, de 04 de agosto de 2011, foram fixados os requisitos de ingresso nas carreiras da aeronáutica. Por sua vez, através da Lei n.º 12.704, de 08 de agosto de 2012 e da Lei n.º 12.705, de 08 de agosto de 2012, houve a fixação de requisitos para o ingresso nas carreiras da Marinha e do Exército, respectivamente.


Organizações criminosas na Lei n. 12.694/2012

30 de julho de 2012

1. Introdução.

 Há dois anos, este blog trouxe uma postagem sobre a definição jurídica de organizações criminosas e os fatores que as diferenciavam das quadrilhas e das associações criminosas. Até junho de 2012, nada de novo ocorreu relacionado ao tema. Contudo, desde então, muitas novidades jurídico-criminais surgiram, com destaque ao julgamento do HC 96.007/SP e ao advento da Lei n. 12.694, de 24 de julho de 2012 (DOU de 25/07/2012). Por isso, mostra-se oportuno revisitar o tema “organizações criminosas”.

 2. O vazio legislativo e a aplicação da Convenção de Palermo.

 Todos sabem que, em matéria de legislação penal, o Brasil é um exemplo a não ser seguido. Não falo sobre o conteúdo político-criminal das leis, mas da péssima técnica legislativa nelas utilizadas. Por isso, temas simples que, em situações normais, não gerariam dúvidas acabam se transformando em desafios hermenêuticos, dividindo opiniões juristas e trazendo decisões judiciais nos mais diversos sentidos. O resultado que essas leis mal concebidas é a “insegurança jurídica”. Foi exatamente o que ocorreu em relação às organizações criminosas.

 Com efeito, em 04 de maio de 1995, entrou em vigor a Lei n. 9.034/1995. Esse diploma estabeleceu normas sobre procedimentos investigatórios e meios de prova relacionados aos ilícitos praticados por organizações criminosas. Pouco depois, editou-se a Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, que tipificou o crime de lavagem de dinheiro, considerando como tal a reintrodução na economia de valores oriundos de crimes praticados por organizações criminosas (art. 1º, inciso VII, redação original). O que gerou perplexidade é que, em ambas as leis, não havia uma definição sobre organizações criminosas.

 Diante desse cenário nebuloso, o Superior Tribunal de Justiça procurou dar eficácia a essa legislação, legitimando o combate às organizações criminosas. Para tanto, trilhou-se pelo entendimento de que, diante da ausência de definição legal, poderiam os intérpretes e aplicadores da lei utilizar a definição de organização criminosa contida na Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, realizada em 15/12/2000 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.015/2004). Nesse sentido, confiram-se a Ação Penal nº 460 e o Habeas Corpus nº 77.771-SP.

 Pois bem. De acordo com a Convenção de Palermo, organização criminosa “é o grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.

 3. A polêmica decisão do STF e as inovações legislativas.

 No julgamento do HC 96.007/SP (Rel. Min. Marco Aurélio), a Suprema Corte decidiu que a Convenção de Palermo é imprestável para definir organizações criminosas. Entendeu-se que viola o princípio da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX, da CF) tratados internacionais estabelecerem o contorno de normas penais incriminadoras (cf. Informativo 670). Seguiu-se, portanto, o crítico entendimento há muito defendido por Luiz Flávio Gomes.

 A consequência imediata dessa decisão é a atipicidade das situações de lavagem de dinheiro decorrentes do produto dos crimes cometidos por organizações criminosas. Na realidade, em matéria de lavagem de capitais, a decisão da Suprema Corte somente não criou uma situação de total impunidade, em razão da Lei n. 12.683/2012 (DOE de 10/07/2012), que passou a considerar como crime de lavagem qualquer ocultação ou dissimulação dos valores obtidos de infração penal.

 Em relação aos aspectos processuais dos crimes cometidos por organizações criminosas, a situação de vácuo decorrente do julgamento do HC 96.007/SP foi superada pela Lei n. 12.694/2012. De acordo com o art. 2º dessa lei, considera-se organização criminosa “a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

 Observe-se que, tal como a definição da Convenção de Palermo, a nova lei exige a presença mínima de 3 pessoas para haver uma organização criminosa. Enquanto o tratado se refere a “infrações graves”, a lei é mais segura e precisa ao se reportar a crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 anos ou que sejam de natureza transnacional.

Em todo caso, mesmo com o advento da nova lei, os efeitos do HC 96.007/SP serão profundos no universo da investigação e do processo criminal. De fato, muitas provas obtidas nos termos da Lei n. 9.034/1995 poderão ser consideradas ilícitas, o que gerará a anulação de processos e a absolvição por prescrição de muitos réus.  Lembremos que, por ter conteúdo penal, a Lei n. 12.694/2012 somente será aplicada aos crimes cometidos após sua vigência, não podendo ter eficácia retroativa para convalidar os atos feitos com base na Convenção de Palermo.


Parabéns, o blog está completando quatro anos de vida!!!

12 de julho de 2012

Quem diria! O blog Opus Iuris está completando quatro anos de vida, o que nos traz um misto de alegria e orgulho.

Nesse período, escrevemos 266 posts, alguns dos quais foram objeto de muitos comentários.

O mais importante, porém, são os 486.590 acessos que tivemos até o exato instantante. É o combustível para continuarmos a escrever por, quem sabe, mais quatro anos.

                                                


Análise do art. 37, IV, da CF: direitos dos aprovados em concurso em vigor em face do surgimento de novo certame público

10 de julho de 2012

1. Em razão do grande volume de trabalho na Defensoria Pública da União, passamos vários dias sem trazer nada de novo ao blog, pelo que pedimos as devidas desculpas aos nossos leitores.

Para tentar suprir essa omissão, hoje escreveremos sobre assunto de grande interesse prático. Analisaremos o conteúdo jurídico do art. 37, IV, da CF, dispositivo esse dotado do seguinte teor:

 Art. 37. […] IV — durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;

2. A toda evidência, o art. 37, inciso IV, da CF traz importante regra referente ao provimento de cargos públicos, a qual prestigia, sobretudo, o princípio da boa-fé e da moralidade administrativa. De acordo com esse dispositivo constitucional, sobrevindo um novo concurso público enquanto vigora um concurso anterior, os candidatos aprovados no certame mais antigo terão prioridade na nomeação em relação aos novos concursados.

Assim, os mais antigos candidatos aprovados, por força do art. 37, inciso IV, da CF, terão prioridade para preencher vagas existentes quando da abertura do edital, bem como as que eventualmente surgirem dentro de seu período de validade.

3. Nessas situações, os candidatos aprovados no certame pretérito têm, no mínimo, direito à tutela jurisdicional inibitória que imponha à Administração obrigação de não fazer consiste em não nomear aprovados no novo concurso em detrimento dos aprovados do concurso anterior.

Em uma perspectiva mais garantista, pode-se, até mesmo, afirmar que os candidatos aprovados no concurso anterior adquirem direito à nomeação quando sobrevém um novo concurso, pois esse fato superveniente denotaria a existência de interesse e necessidade pública no provimento de cargos. Aliás, existem inúmeros precedentes nesse sentido:

 “O art. 37, IV, da Constituição Federal, dispõe que ‘durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre os novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira’. 3. A abertura de novo concurso indicando a necessidade de mais vagas, quando ainda não terminado o prazo do certame anterior, transfere a questão da nomeação do campo da discricionariedade para o da vinculação, uma vez que deve ser observado o direito subjetivo do candidato aprovado à nomeação. Precedentes do STJ.” (TRF-4, MS 27713, DEletronico 07/10/2008).

“Com a irregular abertura de novo concurso, surge para o candidato aprovado o direito líquido e certo de ser nomeado”. (TJPR, Apelação cível e reexame necessário n.º 0110373-3, DJ 11/03/2012)

4. Por fim, não pode ser esquecido o art. 12, § 2º, da Lei n.º 8.112/1990, que proíbe o advento de novos certames enquanto concursos anteriores estão em vigor e possuem candidatos aprovados aguardando nomeação. Vejamos: “Não se abrirá novo concurso enquanto houver candidato aprovado em concurso anterior com prazo de validade não expirado.” À luz desse dispositivo legal, é igualmente plausível a nulidade do novo concurso.

Contudo, a anulação judicial ou administrativa de um processo seletivo é sempre um procedimento desgastante e por demais radical, devendo, à luz do princípio da proporcionalidade, ser evitada, pois as medidas anteriores (proibição das nomeações do novo concurso ou direito à nomeação dos aprovados do concurso anterior) mostram-se igualmente eficazes e menos danosas.


Honorários sucumbenciais das Defensorias Públicas: crítica à súmula 421 do STJ

7 de junho de 2012

 No post de hoje, trataremos da Súmula 421 do Superior Tribunal de Justiça, que versa sobre os honorários sucumbenciais das Defensorias Públicas. Mostraremos que, além de ser uma fonte de equívocos interpretativos, o verbete jurisprudencial não deveria ter sido editado, pois fere a autonomia das Defensorias Públicas e disposições expressas da Lei Complementar n.º 80/1994.

 O sentido e alcance da súmula 421

Nos termos da súmula 421 do Superior Tribunal de Justiça, “Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença.”

A literalidade do enunciado é no sentido de que os entes federativos que possuem defensorias públicas (União, Estados e Distrito Federal) não estão obrigados a pagar honorários sucumbenciais aos órgãos de assistência jurídica a eles vinculados. Assim, a União fica isenta de pagar honorários à Defensoria Pública da União e o Estado de São Paulo, por exemplo, igualmente não paga honorários à respectiva Defensoria Pública.

 Nesse caso, justifica-se a impossibilidade do pagamento, com base na tese de que, sendo as defensorias órgãos desses entes públicos, haveria a confusão entre devedor e credor (art. 381 do Código Civil), o que importa na extinção da obrigação. No precedente que embasou a referida súmula, o Ministro Relator José Delgado assim se manifestou: “A Defensoria Pública é mero, não menos importantíssimo, órgão estadual, no entanto, sem personalidade jurídica e sem capacidade processual, denotando-se a impossibilidade jurídica de acolhimento do pedido da concessão da verba honorária advocatícia, por se visualizar a confusão entre credor e devedor”.1

Na realidade, o grande equívoco consiste  em interpretar a súmula 421 de modo a isentar a Fazenda Pública como um todo do pagamento de honorários às Defensorias Públicas. Realmente, em alguns casos, a súmula permite o pagamento de honorários sucumbenciais por parte do Poder Público. Vejamos: se um necessitado, mediante o patrocínio da Defensoria Pública da União, demandar e sagrar-se vencedor em lide contra uma autarquia federal, como o INCRA, ou outra pessoa hipossuficiente, assistida pela Defensoria Pública estadual, demandar e vencer uma autarquia local, a exemplo do DETRAN, os honorários sucumbenciais serão inegavelmente devidos à DPU e à respectiva DPE. Da mesma forma, se a DPU demandar a União, certo Estado e certo Município e vencer ao final a lide, estes dois últimos pagar-lhe-ão honorários sucumbenciais. Em todos essas hipóteses, não há que se falar em confusão entre credor e devedor.

 Nesse contexto, aparentemente causa perplexidade recente acórdão do STJ que, com base numa interpretação extensiva da Súmula 421, isentou uma entidade da Administração Indireta do Estado do Rio de Janeiro, o RIOPREVIDÊNCIA, de pagar honorários sucumbenciais à Defensoria Pública carioca (REsp 1102459/RJ, julgado em 06/06/2012). Ao que tudo indica, essa decisão foi apenas um distinguishing, pois o que a embasou é a circunstância especial de esse fundo autárquico ser um ente deficitário, carecedor de aportes financeiros do Estado para sobreviver. Assim, pelo menos nesse caso, poder-se-ia falar em confusão. Assim, essa ampliação da súmula 421 não deve alcançar entidades da Administração Indireta que não necessitam de aportes do tesouro para sobreviverem.

O equívoco do STJ na edição da Súmula

A Súmula 421 sequer deveria ter sido editada, pois viola a autonomia dada às defensorias pela EC n.º 45/2004 e as alterações decorrentes da Lei Complementar n.º 132/2009 em matéria de honorários.

Após a Emenda Constitucional nº 45/2004, as Defensorias Públicas dos Estados expressamente passaram a ter autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária (art. 134, § 2º, da CF). Com a Emenda Constitucional n.º 69/2012, concedeu-se essa mesma autonomia à Defensoria Pública do Distrito Federal. Em relação à Defensoria Pública da União, embora sua autonomia não tenha sido consagrada expressamente na Constituição, é possível, com base numa interpretação conforme da EC n.º 45/2004 em relação ao princípio da igualdade, os juízes e tribunais reconhecerem à DPU a mesma autonomia das defensorias públicas distrital e estaduais. Inclusive, a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais – ANADEF interpôs a ADI nº 4.282 junto ao STF, postulando autonomia à DPU com base no princípio da igualdade.

Como bem ressalta Cirilo Augusto Vargas, no artigo “Súmula 421: um equívoco que persiste,  a autonomia das defensorias públicas é essencial, pois “por via reflexa, a instituição deixou de ser um simples órgão auxiliar do governo, passando a ser órgão constitucional independente, sem qualquer subordinação ao Poder Executivo”.

 Além disso, após a Lei Complementar n.º 132/2009, o art. 4º, inciso XXI, da Lei Complementar nº 80/1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, sofreu modificação passando a ter a seguinte redação: “são funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras, executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação de seus membros e servidores.” Ora, claramente, esse dispositivo mostra que as defensorias, todas elas, possuem autonomia para gerir seus honorários sucumbenciais. O que não poderia ser diferente, eis que a verba será direcionada não para seus membros, mas para uma conta especial, destinada ao aperfeiçoamento da instituição.

 Portanto, a persistência da súmula 421 é um erro do STJ.  Cirilo Augusto Vargas é contundente quanto a esse fato: “À guisa de conclusão, verificamos que a antiga decisão do Superior Tribunal de Justiça, que serve como precedente para elaboração da súmula 421, foi proferida no ano de 2003, ou seja, antes da alteração constitucional promovida pela Emenda 45/2004, que consagrou a autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública. Precede também a elaboração da norma prevista no artigo 4º, XXI da Lei Complementar Federal 80/94, que alude aos fundos para aparelhamento da Instituição.”

Por fim, cumpre observar que há premente necessidade de ampliar e melhorar os serviços das Defensorias Públicas em todo o Brasil. Urge a admissão de defensores, servidores e a melhoria das condições materiais de trabalho, o que é essencial para a efetividade do acesso à justiça. De certa forma, a Súmula 421 do STJ tem sua parcela de culpa no descaso estatal em relação às defensorias.


O prazo decadencial para o INSS anular benefícios ilegais

8 de maio de 2012

tempo

 1. Atualmente, os atos administrativos, mesmo que elaborados em contrariedade com a lei, não podem ser anulados a qualquer tempo. De fato, em razão do princípio da segurança jurídica, o decurso do tempo convalida as situações fáticas, suprimindo o poder estatal de exercer o autotutela em relação aos que agiram de boa-fé.

 É certo que, durante muito tempo, não existiu lei estipulando prazo para Administração anular atos ilegais. Assim, entendia-se que o exercício da autotutela poderia ocorrer a qualquer tempo, o que acabava criando grandes injustiças na desconstituição de situações materializadas há mais de 10 ou 20 anos. Essa lacuna foi fechada pela Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito federal.

2. Além de reconhecer a segurança jurídica como um princípio administrativo (art. 2º, caput), a Lei n.º 9.784/1999 estabeleceu, em seu art. 54, § 1º, o prazo decadencial de 5 (cinco) anos para a Administração anular as situações antijurídicas que beneficiam administrados de boa-fé:“o direito da Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

 Após o advento da Lei n.º 9.784/1999, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o prazo decadencial quinquenal nela previsto somente começou a correr a partir da vigência desse diploma, a qual se deu em 01/02/1999. Por isso, apenas se o ato ilegal for praticado após esse marco temporal é que o início do prazo decadencial começa no momento de sua emissão. Nesse sentido, pode ser citado o seguinte precedente:

  “1. Segundo o entendimento firmado pela Corte Especial, caso o ato acoimado de ilegalidade tenha sido praticado antes da promulgação da Lei n.º 9.784/99, a Administração tem o prazo de cincos anos para anulá-lo, a contar da vigência da aludida norma para anulá-lo; caso tenha sido praticado em momento posterior, o prazo qüinqüenal da Administração tem início a partir da sua prática, sob pena de decadência, nos termos do art. 54 da Lei n.º 9.784/99”.1

 A toda evidência, esse entendimento mostra-se inadequado. Com efeito, ao considerar que o princípio da segurança jurídica necessita de lei para ser concretizado, o STJ eternizou o poder de autotutela administrativa em detrimento dos que agiram de boa-fé. Nesse ponto, convém lembrar que a segurança jurídica é fruto de norma constitucional. Assim, cabe ao intérprete dar-lhe força normativa e máxima efetividade. A base jurídica desse postulado é a própria noção de Estado de Direito. Como bem ressalta Gilmar Mendes, “o tema da segurança jurídica tem assento constitucional (princípio do Estado de Direito)”.2 

3.  No plano das relações entre INSS e seus segurados, igualmente não existia um prazo fixando limite à autotutela administrativa. Por isso, as disposições da Lei n.º 9.784/1999 tornaram-se aplicáveis também aos benefícios concedidos por essa autarquia.

Ocorre que, antes mesmo do decurso do prazo de 05 anos, o Governo se apressou e editou a MP n.º 138, de 19.11.2003, convertida na Lei n.º 10.839/2004, que acrescentou o art. 103-A à Lei n.º 8.213/1991, fixando o prazo decadencial de 10 anos para o INSS rever os seus atos.Por isso, o STJ, em decisão tomada no Recurso Especial repetitivo n.º 1114938/AL, estabeleceu que o prazo decenal para o INSS revisar seus benefícios somente começou a correr em 01/02/1999, o que cria total insegurança para milhares de idosos. De fato, praticamente, eternizou-se a autotutela administrativa no regime geral de previdência. Assim, um benefício com algum vício concedido em 01/01/1970 poderá ser revisto até 01/02/2009, o que mostra um total descaso com o princípio da segurança jurídica.

 4. Observe-se que não estamos a defender as constantes fraudes de que é vítima a previdência. É evidente que o INSS deve ser implacável com servidores ou segurados que fazem maracutaias falsificando documentos ou incluindo dados falsos nos sistemas. Contudo, na maior parte dos casos, os benefícios previdenciários são concedidos ou majorados indevidamente sem que o segurado sequer tenha ciência desses vícios. Por isso, a proteção da boa-fé merece especial atenção, mediante a aplicação dos prazos decadenciais, mesmo que retroativamente em detrimento do Poder Público. Nada mais injusto e inadequado do que cancelar uma pensão por morte ou aposentadoria, muitos anos após sua concessão, sendo certo que, em regra, a medida recairá sobre pessoas idosas. O cancelamento de uma aposentadoria é, quase sempre, episódio traumático na vida do segurado e de sua família.

1 STJ, AgRg no REsp 669.213/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 10/06/2008, DJe 04/08/2008.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 489.


O dia internacional do trabalhador

1 de maio de 2012

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Hoje é dia internacional dos trabalhadores. As origens dessa data não podem ser esquecidas, razão por que o presente post fará breves comentários sobre o 1º de maio. 

Como é de conhecimento amplo, no século XIX, as condições do trabalho industrial nos Estados Unidos e na Europa eram as piores possíveis: jornadas exaustivas, baixos salários e precárias condições de segurança. Nesse período, o capitalismo mostrou sua face mais selvagem. Diante desse ambiente opressivo, em 1º de maio de 1886, operários de Chicago iniciaram uma greve geral. A repressão policial ao movimento foi dura, violenta e sanguinária com dezenas de prisões e até disparos contra a multidão, o que ocasionou diversas mortes. Em seguida, os líderes do movimento foram submetidos a julgamentos sumários e condenados a pena de morte, sob a acusação de supostos homicídios de policiais.

Em todo o mundo, os episódios de maio de 1886 causaram indignação nos movimentos operários. Assim, em 1889, a Segunda Internacional Socialista, ocorrida em Paris, escolheu o 1º de maio como o dia internacional do trabalhador, em homenagem ao sangue derramado anos antes em Chicago.

Somente após a Primeira Guerra Mundial o dia 1º de maio passou a ser declarado feriado. No pós-Primeira Guerra, os direitos sociais começaram a se difundir e obter reconhecimento jurídico pelo mundo. Assim, em 1919, a França instituiu o feriado, sendo seguida, em 1920, pela União Soviética. Curiosamente, nos EUA, não há um dia do trabalhador, mas o dia do trabalho que é comemorado no primeiro domingo de setembro.

 No Brasil, por força de decreto do então presidente Artur Bernardes, o 1º de maio é feriado desde 1925. Aproveitando o simbolismo da data, o então ditador Getúlio Vargas, em 1º de maio de 1940, anunciou a criação do salário mínimo em comício para 40 mil pessoas no Rio de Janeiro. Em 1º de maio de 1943, Vargas promulgou a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei n.º 5.451, de 1º de maio de 1943). De certa forma, o clima festivo e alienante do 1º de maio no Brasil é uma herança do populismo varguista.

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A aposentadoria por invalidez dos servidores públicos após a EC n.º 70/2012

5 de abril de 2012

Aposentado

1. Introdução

 Depois de uma longa pausa, voltaremos a postar em grande estilo, fazendo comentários à Emenda Constitucional n.º 70, de 29/03/2012 (DOU 30/03/2012), que trata da aposentadoria por invalidez no âmbito dos regimes próprios de previdência social.

Em linhas gerais, a novel emenda criou nova regra de transição (art. 6-A) no texto da Emenda Constitucional n.º 41/2003, garantindo aos servidores, que ingressaram até 31 de dezembro de 2003 (data de publicação da EC n.º 41/2003), o direito à aposentadoria por invalidez com proventos calculados com base na última remuneração e corrigidos mediante paridade.

Na prática, a EC n.º 70/2012 representa uma grande vitória dos servidores públicos, pois corrigiu, conforme veremos, distorções e injustiças decorrentes da EC n.º 41/2003.

 2. Os regimes de previdência social do Brasil

 No Brasil, a previdência social é composta por regimes básicos e por regimes complementares.[1]

Os regimes básicos são o RGPS – Regime Geral de Previdência Social e os RPPS – Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS. Tanto o RGPS quanto o RPSS possuem natureza estatal e filiação compulsória. Por sua vez, os regimes complementares são o de natureza privada, destinado a complementar os benefícios de qualquer segurado (art. 202 da CF) e o de natureza pública, cuja finalidade é complementar os RPPS (art. 40, § § 14, 15 e 16, da CF).

Em relação à clientela, os RPPS destinam-se exclusivamente aos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos e aos militares. Por sua vez, o RGPS agrega todos os demais trabalhadores, a exemplo dos empregados privados ou públicos e os autônomos em geral etc.

Nesse contexto, o primeiro aspecto a ser observado é que a EC n.º 70/2012 atinge somente os segurados civis dos RPPS. Evidentemente, os militares continuam sendo reformados por invalidez à luz da legislação específica que os rege. Da mesma forma, por versar apenas sobre os regimes próprios, a nova emenda não altera as aposentadorias por invalidez do RGPS.

 3. O cálculo das aposentadorias nos RPPS, inclusive por invalidez, após a EC n.º 41/2003

 Tradicionalmente, os servidores públicos aposentavam-se com proventos idênticos à remuneração que antes auferiam em atividade. Assim, o contra-cheque do inativo era um espelho do contra-cheque desse mesmo servidor em atividade. Entendia-se que a aposentadoria, no serviço público, tinha natureza de prêmio administrativo.

A toda evidência, o sistema de aposentadorias dos servidores públicos, tal como moldado pelo constituinte originário, era insustentável, faltando-lhe base contributiva e planejamento atuarial. Para tentar sanar esse problema, foram editadas as EC n.º 20/1998 e n.º 41/2003.

Não cabe aqui descrever as muitas inovações de cada uma dessas importantes emendas. O que deve ser destacado é que a reforma oriunda da EC n.º 41/2003 abriu espaço para a criação de novo sistema de cálculo de proventos. Foram especificamente a nova redação dada aos §§ 1º e 3º do art. 40 da Constituição e a inserção do § 17 nesse mesmo artigo as balizas constitucionais que legitimaram a criação legal de um novo modelo de cálculos. Eis a redação desses dispositivos:

 “Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

 § 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17:

§ 3º. Para cálculo de proventos de aposentadoria, por ocasião de sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que trata este artigo e o art. 201, na forma da lei.[….].

§ 17. Todos os valores de remuneração considerados para o cálculo do benefício previsto no § 3º serão devidamente atualizados, na forma da lei.”

 Portanto, antes da EC nº 41/2003, os proventos de servidores públicos eram quantificados com base na remuneração no cargo efetivo em que se deu a jubilação. Após a citada reforma previdenciária, houve a expressa autorização para que os proventos fossem fixados, levando-se em conta as contribuições vertidas ao sistema previdenciário, na forma prevista em lei (art. 40, § 3º, da CF). Coube ao art. 1º da Lei nº 10.887/2004 (MP 167/2004) regular essa nova forma de cálculo, instituindo a média aritmética simples das 80% maiores remunerações contributivas, que é idêntico ao sistema de cálculo do RGPS.

 4. A injustiça da EC n.º 41/2003 em relação às aposentadorias por invalidez

 A aplicação do cálculo pela média previsto no art. 1º da Lei n.º 10.887/2004 aos servidores públicos efetivos implicou em perdas financeiras.

 De fato, esse sistema de cálculo leva em consideração os valores recebidos pelo servidor de julho de 1994 até a data da aposentadoria. Logo, se histórico funcional do agente público foi de baixas remunerações, o valor médio dos proventos espelhará esse passado. Por isso, pouco adiantará, ao tempo da concessão, o servidor receber remuneração elevada, decorrente, por exemplo, da admissão em novo cargo.

Para amenizar os efeitos da EC n.º 41/2003, foram criadas, em relação às aposentadorias voluntárias, a regra de transição do art. 6º da EC n.º 41/2003 e, mais tarde, a regra do art. 3º da EC n.º 47/2005. Logo, os servidores que ingressaram até determinadas datas podiam aposentar-se voluntariamente com proventos integrais com base na última remuneração e com paridade, escapando, assim, do cálculo pela média.

A grande injustiça é que a EC n.º 41/2003 não criou regra de transição em relação às aposentadorias por invalidez. Logo, ainda que o servidor inválido tivesse ingressado antes da EC n.º 20/1998, seus proventos seria calculados nos termos do art. 40, § 3º, da CF, com redação dada pela EC nº 41/2003.

Assim, os servidores aposentados por invalidez, no momento existencial que mais precisam do amparo previdenciário dos regimes próprios, acabavam passando à inatividade com proventos muito inferiores às remunerações que recebiam em atividade. Para piorar, eles sequer possuíam perspectiva de reajuste, pois, por força do § 8º do art. 40 da CF, igualmente reformada pela EC nº 41/2003, houve o fim da garantia da paridade (direito de os inativos receberem os mesmo aumentos que eventualmente sejam concedidos aos servidores ativos).

 5. Aspectos gerais das inovações da EC n.º 70/2012

 Como visto, a EC n.º 70/2012 criou uma regra de transição. O dispositivo que a consagra é o art. 6º-A da EC n.º 41/2003. Dele, podem ser extraídos os seguintes aspectos:

a) Anova regra não se aplica a todos os servidores, mas apenas aos que ingressaram no serviço público até 31 de dezembro de 2003. Logo, ainda que se aposentem por invalidez, os servidores admitidos após 31 de dezembro de 2003 terão seus proventos calculados pela média aritmética simples das 80% maiores remunerações contributivas colhidas desde a admissão até a aposentadoria.

b) Os servidores que ingressaram antes de 31/12/2003, mas cuja invalidez não decorreu de doença especificada em lei ou acidente de trabalho continuaram a receber aposentadoria com proventos proporcionais. A diferença é que a proporcionalidade não incidirá mais sobre o valor médio e sim sobre o valor da última remuneração do cargo efetivo que ocupavam em atividade.

c) Mesmo que calculada nos termos da EC n. 70/2012, não se incorporam aos proventos da por invalidez vantagens transitórias não inerentes ao cargo efetivo, a exemplo de gratificações de função ou gratificações de atividades especiais, como a acumulação de delegacias ou varas.

d) As aposentarias por invalidez concedidas com base no art. 40, § 1º, inciso I, da CF, com redação da EC n.º 41/2003, a servidores que ingressaram antes de 31/12/2003 serão revistas no prazo de 180 dias (art. 2º da EC n.º 70/2012); contudo, os efeitos financeiros são retroativos à data de publicação da EC n.º 70/2012. Por isso, não será possível postular-se as diferenças retroativas dos últimos cinco anos. Em todo caso, se a unidade gestora do RPPS fizer, por exemplo, a revisão ex-officio um ano após a publicação da nova emenda, o servidor inativo terá direito às diferenças dos últimos 12 (doze) meses.

e) É possível cogitar a inconstitucionalidade da revisão ex-officio do art. 2º da EC n.º 70/2012 em relação aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, pois há aparente violação à autonomia que a Constituição lhes assegurada. Nesse ponto, é sempre bom lembrar que a forma federativa é uma das cláusulas pétreas trazidas no art. 60, § 4º, da Constituição. É certo que o constituinte derivado pode alterar com grande liberdade as regras de cálculo e concessão de benefícios previdenciários dos servidores públicos; porém, é igualmente correto que ele não pode impor aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a realização ex-officio de uma atividade tipicamente administrativa, que é a revisão de proventos.


[1] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 14ª ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 31.


Direito à saúde: a obrigação do Poder Público em fornecer medicamentos

21 de fevereiro de 2012

Na Constituição Federal de 1988, o direito fundamental à saúde recebe destaque especial em diversas passagens.

No art. 6º da CF, esse direito é elencado no rol de direitos fundamentais sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Por sua vez, no Capítulo II do Título “Da Ordem Social” (arts. 196 a 200), esse direito fundamental social recebe uma solene aclamação: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Não poderia ser diferente essa primazia normativa dada ao direito à saúde, afinal, um dos fundamentos da Constituição Federal de 1988 é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), o qual possui, como um de seus desdobramentos jurídicos, o mínimo existencial. Em termos sucintos, o mínimo existencial compreende o conjunto de bens elementares à vida digna do ser humano, tais como saúde pública, habitação, alimentação e educação básica.

Sob o aspecto estrutural, o direito fundamental à saúde apresenta dupla dimensão. Uma de caráter positivo, que diz respeito ao direito público subjetivo em receber serviços médicos em hospitais e postos de saúde bem equipados e com leitos em número adequado, o que exige, por outro lado, profissionais de saúde capacitados e medicamentos suficientes. A outra dimensão desse direito tem caráter negativa, ou seja, é um “direito de defesa” contra qualquer agressão de terceiros (incluído o próprio Estado) à saúde do particular.

No amplo espectro das prestações positivas relacionadas ao direito à saúde, deve ser destacado o fornecimento de medicamentos aos que deles necessitam.

Em diversos precedentes, o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado esse direito fundamental à obtenção de medicamentos. De fato, há uma nítida tendência de permitir-se a concretização judicial dos direitos sociais relacionados ao mínimo existêncial.

Nesse contexto, deve ser feita referência às Suspensões de Tutela Antecipada n.º 175 e 178, julgadas recentemente pelo Plenário do STF. Nesses casos, houve a fixação de parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Esse processo foi, sobremaneira, enriquecido em razão de Audiência Pública sobre o Sistema Único de Saúde – SUS e a Judicialização do direito à saúde. Nesses julgados, importantes entendimentos foram fixados. Vejamos os principais:

a) foi reafirmada pelo STF a responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Logo, tanto a União como Estado e Município podem ser réus em ação que envolva a efetivação do direito à saúde. Assim, é de incumbência de todos os entes federativos, sem distinção, o fornecimento ou o custeio dos medicamentos necessários à preservação da saúde e da vida dos cidadãos, ainda que o remédio não conste nas listas organizadas pelo Ministério da Saúde.

b) foi estabelecida a necessidade de se observar se a política pública adotada pelo SUS é eficiente. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, “pode-se concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento da opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.”

c) foi determinado que “o alto preço do medicamento não é, por si só, motivo para o seu não fornecimento, visto que a Política de Dispensação de Medicamentos excepcionais visa a contemplar justamente o acesso da população acometida por enfermidades raras aos tratamentos disponíveis.”